Valério Arcary – 01 Junho 2021 – Foto: DAQUI
Eis o artigo.
“Estratégia sem tática é o caminho mais lento para a vitória. Tática sem estratégia é o ruído antes da derrota” (Sun Tsu).
Existem três avaliações diferentes na esquerda sobre as decisões do STF sobre a anulação das condenações de Lula. O tema tem importância grande, porque é central na interpretação do novo momento na conjuntura. Lula encabeça a preferência em todas as pesquisas de opinião disponíveis. Mantidas as atuais condições, o que é, evidentemente, imprevisível, Lula estaria em um segundo turno contra Bolsonaro.
É imprevisível porque ninguém pode saber qual será a conjuntura em meados de 2022.
- Qual será o desenlace da CPI da pandemia no Senado?
- Qual será a evolução do governo Bolsonaro e, talvez, até o seu destino?
- Qual será o contexto da pandemia daqui a um ano?
- Qual será a situação econômica? Como vão evoluir as taxas de desemprego?
- Qual será a taxa de inflação?
- Qual será a evolução do salário médio?
- Quais serão os impactos sociais das privatizações da Eletrobrás, Correios, Cedae/RJ previstas para o segundo semestre de 2021, se não forem detidas?
- E o mais importante, qual será a relação social e política de forças?
Estas e muitas outras variáveis, hoje, impensáveis, porque “merdas acontecem” exigem máxima prudência.
- Mas não diminuem a necessidade de retirar lições da campanha Lula Livre,
- porque foi a maior vitória democrática dos últimos cinco anos,
- e quem diminuir seu significado está, totalmente, equivocado.
Foto: Divulgação
A primeira é ingênua e circular: vencemos porque a causa era justa e justiça foi feita.
- Muitas causas justas não são reconhecidas pela justiça.
- Não devemos ter nem ilusões, nem muitas expectativas na justiça.
- Lembremos que o impeachment de Dilma Rousseff foi referendado pela justiça.
Julgamentos políticos se decidem em função de interesses políticos, ou seja, a luta pelo poder.
Esta interpretação remete, portanto, o desenlace da votação da incompetência da 13ª Vara de Curitiba e a suspeição de Moro
- à força da campanha nacional e internacional.
- Ao talento da defesa jurídica pelos advogados de Lula.
- À unidade conseguida na maioria da esquerda para a organização dos Encontros e, sobretudo, da Vigília em frente ao prédio da Polícia Federal.
- À atividade incansável da rede de juristas organizados na ABJD,
- à adesão de grandes artistas populares que influenciaram o mundo da cultura,
- à solidariedade da ala mais à esquerda da Igreja Católica, que abriu as portas do Vaticano, além de outros religiosos.
Remete, também,
- à estabilidade na formação do Comitê Lula Livre Nacional e sua capilaridade em muitas cidades,
- à regularidade dos boletins de informação,
- à qualidade dos materiais de agitação e propaganda,
- à iniciativa dos Festivais,
- à persistência dos mutirões, as atividades de rua
- e, também, à força do compromisso do próprio Lula que perseverou, destemidamente.
Há muitos grãos de verdade neste balanço, mas ele é unilateral. Em sua versão mais extrema desconsidera a divisão entre as forças sociais hostis ou até inimigas, uma versão ilusória de voluntarismo.
A segunda é aquela que argumenta que uma fração da classe dominante passou a defender a liberdade de Lula,
- como resposta a uma nova situação política precipitada pela crise sanitária, econômica, social e política ao longo do último ano,
- em função dos desastres do governo de extrema-direita.
O isolamento de Bolsonaro acabou favorecendo Lula.
A pressão burguesa sobre o STF
- responderia, preventivamente, à preocupação diante do perigo de uma explosão social,
- ou à necessidade de contar com Lula e com o PT para preservar a estabilidade institucional em caso de um impeachment.
Nas correntes mais sectárias florescem ideias perigosas e até, curiosamente, contraditórias, senão de inspiração paranoica.
- Alguns sugerem que a fração mais poderosa da burguesia pressionou pela liberdade de Lula para enfraquecer Bolsonaro,
- outros que Lula teria interesse em preservar Bolsonaro, porque perderia favoritismo nas eleições de 2022, se Bolsonaro fosse deslocado.
- Há, também, um grão de verdade aqui, mas não mais do que isso.
Na sua versão mais extrema esta visão flerta com teorias de conspiração.
A terceira é muito mais complexa.
A campanha Lula Livre começou em condições muito adversas.
Quando Lula foi preso, em abril de 2018,
- era impossível prever que em novembro de 2019 estaria solto
- e, muito menos, que em março de 2020 teria recuperado seus direitos políticos.
- A evolução foi muito rápida.
Campanhas similares, como a luta pela liberdade de Mandela foram, incomparavelmente, mais longas e difíceis.
Processos assim só podem ser explicados considerando muitos fatores.
- Claro que é educativo começar a avaliação sublinhando a importância da campanha unitária da esquerda pela sua libertação.
- Deixou uma lição inspiradora para os perigos do futuro.
- Na hora das derrotas, conseguir manter a cabeça erguida é essencial. Nada substitui a firmeza e a dignidade.
E ficaram muito mal diante da fotografia da história aquelas correntes e grupos de esquerda que se recusaram a defender Lula Livre.
- Sem o engajamento incansável do MST na construção da campanha tudo teria sido muito mais difícil.
- Sem a aposta que prevaleceu no PT de que a influência de Lula permitia que a campanha tivesse uma audiência de massas não teria sido possível.
Mas a unidade dos dois maiores partidos da esquerda brasileira além do PT, PSol e PCdB foi fundamental, também.
- Nunca foi uma luta somente do PT.
- A luta pela liberdade de Lula engajou, em maior ou menor proporção, a imensa maioria da esquerda brasileira, felizmente.
Mas seria ingênuo atribuir o desenlace das votações no STF à força da campanha.
- Não foi possível organizar atos de massas pelo Lula Livre.
- Todos os atos foram, em maior ou menor medida, atos de vanguarda.
- Sejamos honestos: atos da militância.
Ou seja, agruparam o ativismo mais consciente ou, ideologicamente, politizado, em especial, os “inoxidáveis”, a “velha guarda” da esquerda brasileira que veio dos anos oitenta e noventa.
Outros fatores pesaram muito no desenlace das votações do STF.
- O julgamento de Lula foi sempre, desde o início, um processo político,
- indivisível do golpe institucional de 2016 que deslocou Dilma Rousseff da presidência.
Esse era o calcanhar de Aquiles da operação que culminou na prisão de Lula:
- nenhum setor importante da burguesia se posicionou contra o golpe.
- Um golpe semelhante ao que aconteceu em Honduras e no Paraguai.
- Um golpe que abriu o caminho para Bolsonaro chegar à presidência.
A perseguição política mascarada pela judicialização era uma operação muito perigosa, porque estabelecia precedente grave, a legitimação do lawfare.
Quando Sergio Moro aceitou, desenvergonhadamente, o cargo de ministro da Justiça no governo de extrema-direita liderado por um neofascista como Bolsonaro, a turbulência começou, sobretudo, no exterior.
A divisão do mundo jurídico entre os denominados “garantistas” e “lavajatistas” existiu, portanto, durante todo o processo.
- O modelo de denúncias construídas sobre delações premiadas
- sem outras provas além dos testemunhos de réus interessados em anistia
- era um escândalo.
Mas tudo se acelerou na medida em que a manipulação realizada pela Lava-Jato foi desmascarada pela publicação pelo The Intercept da troca de mensagens entre Sergio Moro e os procuradores, e confirmada pelos arquivos da operação spoofing,
- Quando o centrão deixou de ser somente base de sustentação parlamentar e se incorporou, plenamente, no governo
- os conflitos com a operação Lava-Jato passaram a se expressar dentro do governo.
Não são poucos os parlamentares do centrão, mas, também, do MDB, Democratas e até do PSDB, ninguém menos que Aécio Neves, candidato presidencial derrotado em 2014, partidos históricos da representação burguesa desde o fim da ditadura, que estavam sob investigação.
Não menos importante foi a mudança lenta da conjuntura em função da hecatombe sanitária da pandemia.
- O obtuso negacionismo de Bolsonaro diante da tragédia humana do contágio em massa e do colapso do SUS,
- desconsiderando a emergência da contratação de vacinas, defendendo remédios imaginários, denunciando a necessidade de quarentenas e, constantemente, ameaçando com o autogolpe
- resultou em enfraquecimento social e político.
A derrota de Trump mudou o lugar do governo Bolsonaro no mundo de forma qualitativa.
- Ainda que Bolsonaro mantenha apoio majoritário na “massa da burguesia”,quando consideramos os seis milhões de empresários de conjunto,
- o desastre em curso produziu fissuras no núcleo duro da classe dominante.
Nenhum setor defende o impeachment, mas o manifesto dos 500 foi um alerta amarelo.
A maioria da grande burguesia, alguns poucos milhares de bilionários, ainda aposta na preservação do regime democrático-eleitoral. As ameaças bonapartistas de Bolsonaro fraturam a classe dominante.
E um regime democrático-liberal não é possível sem a esquerda na legalidade.
Vencemos, porque lutamos, mas, também, porque nossos inimigos se dividiram.
E a luta de classes nunca é em vão.
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É professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/609758-a-fratura-da-classe-dominante-artigo-de-valerio-arcary
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