Se algo se nos impôs de modo claro, com esta terrível pandemia, é que tudo e todos estamos interligados.
Anselmo Borges – 22/05/2021 Imagem: Pinterest
O que andamos a fazer na vida? A fazer-nos, a partir de outros e uns com os outros. Quando olhamos para a neotenia, temos de concluir: ou a natureza foi madrasta para nós e não nos deu o que devia dar, como fez com os outros animais, ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos: humanos, tendo de receber por cultura e produzindo cultura o que a natura nos não deu, sendo inventivos, criando o novo.
1. Constatámos que nos contagiamos uns aos outros, de tal modo que até foi e, por vezes, ainda é (por quanto tempo?), necessário desviarmo-nos uns dos outros, usar máscara, ficar confinados.
Percebemos que precisamos de nos proteger uns aos outros: ou nos salvamos juntos ou podemos perder-nos todos.
Aí está o exemplo das vacinas:
- basta um pouco de egoísmo esclarecido, para se perceber que elas têm de ser distribuídas por todos,
- pois enquanto houver alguém não vacinado no mundo
- a ameaça continua e tanto mais grave quanto irão surgindo variantes do vírus…
2. Cada uma de nós, cada um de nós é ela, é ele, único, única (cada uma, cada um diz “eu” como mais ninguém pode ou pôde alguma vez dizer). O enigma, o milagre espantoso do eu, ser autoconciente, consciente de si, alguém como nunca houve outro ou outra!
Será que deste modo se está a afirmar o individualismo? De modo nenhum.
- Porque cada um de nós é um eu único, mas sempre na relação constituinte.
- Uma das características essenciais que nos distinguem dos outros animais é a neotenia (nascemos prematuros), que faz com que, vindos ao mundo por fazer, tenhamos de fazer-nos.
- O que andamos a fazer na vida? A fazer-nos, a partir de outros e uns com os outros.
Quando olhamos para a neotenia, temos de concluir:
- ou a natureza foi madrasta para nós e não nos deu o que devia dar, como fez com os outros animais,
- ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos:
- humanos, tendo de receber por cultura e produzindo cultura o que a natura nos não deu, sendo inventivos, criando o novo.
Esta é,
- por um lado, a experiência da liberdade — somos dados a nós mesmos, com a responsabilidade de nos fazermos —
- e , por outro, a experiência radical da alteridade: sou eu com o outro, que também é um eu, mas um eu que não sou eu, um eu outro. E fazemo-nos uns aos outros e sempre com outros.
_________________________
Aliás, com esta pergunta tremenda: se eu tivesse encontrado na vida outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas, lido outros livros, feito outras viagens…, seria eu? Sim, seria eu mas de outro modo (idem sed aliter).
_________________________
- Temos uma herança genética (aquele óvulo que foi fecundado por aquele espermatozóide) e uma herança cultural.
- E, viajando para trás na história tanto genética como cultural, as relações são in-findas.
- Encontramos os pais, os avós, os bisavós, os trisavós, os tetraavós…, por sua vez com relações e vínculos infindáveis…, e não é difícil concluir que poderíamos pura e simplesemnte não existir.
É um milagre existir precisamente “eu”.
Do ponto de vista cultural:
- estou a escrever e, se reflectir,
- constato que isso é possível porque há os que me ensinaram as primeiras letras, e a juntá-las, e a ler,
- e a língua portuguesa (que eu não inventei…), em relação e contacto com outras línguas (o que seria a língua portuguesa sem o latim?),
- encontro professores e mestres, que conheci, mas também os que não conhecei, mas foram eles que ensinaram estes meus mestres, e os que escreveram livros que eu li,
- que, por sua vez, não existiriam, se o seus autores não tivessem tido contacto com outros autores e outros livros… indefinidamente…
O que seria eu, quem seria eu sem todos aqueles e aquelas que entraram na minha vida sem eles saberem nem mesmo eu…
Ah, e eu não sei fazer automóveis nem computadores, nem telefones, nem cultivo nada do que me alimenta, que vem de tantas partes do mundo e resulta do trabalho concertado de tantos e de tantas por esse mundo além!…
_______________________________
-
Afinal, o que somos uns sem os outros, os conhecidos e aqueles e aquelas — constituem incomensuralvelmente a maior parte, a quase totalidade — que não conhecemos?
-
Somos e estamos interligados por vínculos indesmentíveis, sem os quais não seríamos, precisando de tirar dessa constatação as devidas consequências…
-
Temos uma dívida universal…
_______________________________
3. E somos, vindos de uma história gigantesca:
- a evolução, desde o Big Bang, há 13.700 milhões de anos. E deu-se a expansão do Universo.
- E a Terra terá uns 5.000 milhões de anos.
- E não havia vida e apareceu a vida há uns 4.000 milhões de anos, e a vida foi-se expandindo e complexificando…
Muito lentamente foram surgindo os hominídeos, veio o sapiens e depois, há uns 200-150 mil anos, o sapiens sapiens…, sendo necessário acrescentar: sapiens sapiens (sapiente sapiente) e ao mesmo tempo demens demens (demente demente)…
_____________________________
Aparecemos inseridos neste processo gigantesco, fazemos parte da Terra, a nossa casa comum, num vínculo indestrutível. Ela está ferida e grita. Como vamos tratá-la? É a casa de nós todos, da Humanidade inteira e ou cuidamos dela todos ou não há futuro…
_____________________________
Mas olhemos para a História propriamente dita da Humanidade, a que se inaugura com o sapiens sapiens. Que encontramos?
- O melhor e o pior, a mais heróica grandeza e a mais vil baixeza, santos e pecadores, progressos e regressões, heróis e cobardes, inventores e traidores, impérios contra impérios e rios de sangue…, migrações e encontros e desencontros entre povos, culturas e civilizações…
- E cada povo precisa de assumir a sua história, sem negá-la, porque a memória faz parte da identidade, e os erros não se resolvem derrubando estátuas nem autoflagelando-se, mas recolhendo os melhores ensinamentos…, para evitar mais erros
4. Aqui chegados, também perguntamos:
Porque houve o Big Bang e não nada? E: Que futuro? Para onde queremos ir? Há um Sentido último?
(Continua)
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/tudo-e-todos-interligados-1-13750503.html
Leave a Reply