Na obra coletiva mais recente que codirigiu, Thomas Piketty escreveu um artigo em que analisa como a esquerda tornou-se o campo dos diplomados em detrimento dos trabalhadores.
A reportagem é de Hervé Nathan, publicada por Alternatives Économiques, 08-05-2021. A tradução é de André Langer.
Imagem – Reprodução da capa do livro / Reprodução
É uma obra volumosa de quase 600 páginas intitulada Clivages politiques et inégalités sociales – Une étude de 50 démocraties (1948-2020) (Divisões políticas e desigualdades sociais), editada conjuntamente por EHESS, Gallimard e Seuil, e, convenhamos, é preciso uma certa coragem para mergulhar neste ambicioso “estudo de 50 democracias (1948 -2020)”,conduzido por uma equipe internacional sob a direção de Amry Gethin, Clara Martinez-Toledano e Thomas Piketty.
Homenagem seja feita aqui aos “chercheurs benedectins” (“pesquisadores beneditinos”, referência a um trabalho minucioso e intelectual]
- que desenterraram as séries de pesquisas pós-eleitorais de países tão diversos como os Estados Unidos, Botswana, Tailândia, Chile, França…,
- e forjaram os instrumentos de análise estatística que permitem as comparações.
Não há dúvida de que gerações de estudantes de ciências políticas serão levadas a mergulhar nesse mundo!
Thomas Piketty escreveu o artigo sobre a França, os Estados Unidos e o Reino Unido, esses três países que conheceram desde o pós-Segunda Guerra Mundial uma evolução paralela do voto “de esquerda” (uma categoria bastante ampla que vai dos comunistas e socialistas na França, aos democratas nos Estados Unidos e aos trabalhistas na Grã-Bretanha).
- “Enquanto os eleitores mais diplomados votaram mais em partidos conservadores e afins nas décadas de 1950 e 1960,
- o exato oposto era verdadeiro nos anos 2000 e 2010, com a participação dos votos em partidos socialistas e afins aumentando claramente com o nível de educação”, observa Piketty. Por outro lado,
- as categorias “de base” da socialdemocracia – trabalhadores, empregados, não diplomados – se afastaram desses partidos,
- e é aqui, sem dúvida, que reside o drama da esquerda que se pretendia, desde Jaurès, “a aliança de professores e trabalhadores”.
“Esquerda brâmane”
Thomas Piketty lança, então, um conceito irônico: “a esquerda brâmane”, em referência à casta dos “educados” (originalmente a dos sacerdotes) na Índia.
- A “esquerda brâmane” opõe-se à “direita mercantilista”,
- já que os cidadãos das classes proprietárias seguem votando de acordo com seus interesses.
É um paradoxo: se o voto de classe desapareceu na esquerda, perdura na direita!
Em seu artigo, o economista se ateve à fria observação estatística. Mas podemos ver muito bem como a “esquerda” não apenas sofreu, mas acelerou essa mudança social que não tinha nada de inevitável. Através de escolhas estratégicas, como ele explica em uma entrevista à L’Obs:
- “Nos anos 1990, foram os partidos de centro-esquerda (os democratas sob Clinton, os trabalhistas sob Blair, os socialdemocratas sob Schröder, os socialistas franceses sob Mitterrand)
- que foram mais longe nas reformas destinadas a desregulamentar os mercados financeiros, para liberar os movimentos de capitais sem prévia harmonização fiscal…
A partir de então, esses partidos foram associados aos vencedores da ‘globalização feliz’”.
Por meio de mudanças semânticas, como quando Lionel Jospin declarou em 2002: “Meu programa não é socialista, é moderno”, enquanto seu camarada e ex-primeiro-ministro Pierre Mauroy julgava em vão:
“Devemos usar as palavras trabalhadores, operários ou empregados: estes não são palavrões!”.
Adeus proletariado, bem-vindos graduados
A teorização do adeus ao proletariado, parafraseando o filósofo André Gorz, se dá em 2011 quando o think tank Terra Nova publicou uma nota de seu fundador Olivier Ferrand intitulada “Esquerda: qual é a maioria eleitoral de 2012”, que precede a análise de Piketty:
“A coalizão histórica que apoia a esquerda há quase um século, baseada na classe operária, está em declínio”, afirma.
Os operários são menos numerosos, votam menos na esquerda (Lionel Jospin obteve apenas 13% dos votos dos operários em 2002).
Mas
- o problema não é a esquerda e a falta de perspectivas que ela oferece às categorias populares,
- mas o povo, “colocado em histeria pela extrema direita”,
- que se opõe ao progressismo da esquerda nas questões de “sociedade”: imigração, feminismo e homossexualidade.
Daí a ideia da “nota Terra Nova” (assim chamada erroneamente porque a fundação decidiu não mais defendê-la sob o impulso de seu atual diretor, Thierry Pech), de uma “nova coalizão” que reúna graduados, jovens, minorias e mulheres.
- “Ao contrário do eleitorado histórico da esquerda, unido por questões socioeconômicas,
- esta França do futuro está antes de tudo unida por seus valores culturais e progressistas:
- ela quer mudanças, ela é tolerante, aberta, unida, otimista e ofensiva”.
É um bom programa, mas que
- mascara a renúncia às reivindicações clássicas do movimento operário,
- como salários, estabilidade no emprego, condições de trabalho, distribuição do poder nas empresas, controle da produção…
- que o jugo do neoliberalismo proíbe satisfazer.
Prático, mas problemático, porque, salvo as mulheres, essas categorias são minoria no eleitorado, o que é bastante incômodo quando se ambiciona conquistar o poder nas urnas. E, acima de tudo, é ignorar que as mulheres, os imigrantes, os jovens… são muitas vezes empregadas e empregados, trabalhadoras e trabalhadores cuja perda de efetivos também é em parte uma ilusão de ótica, como explica Philippe Askenazy.
Sobre quais bases sociais é possível reunir uma maioria popular?
Olivier Ferrand, falecido em 2012, não foi seguido, pelo menos oficialmente, pelo Partido Socialista. Cinco anos depois,
- a esquerda do governo ficou ainda mais confusa sob François Hollande,
- conseguindo dar as costas aos trabalhadores e aos empregados, homens e mulheres, com a lei El Khomri,
- aos jovens com a renúncia ao recebimento do controle de identidade
- e aos imigrantes com a caducidade de nacionalidade, a ponto de se colocar fora do jogo!
Para falar a verdade,
- o debate que levaria a ter que escolher entre a classe trabalhadora e as minorias progressistas não era inteiramente novo em 2011,
- pois havia atravessado a extrema esquerda na década de 1970 quando, após ter investido nas fábricas com os “estabelecidos”,
- percebeu que os trabalhadores não aderiram facilmente ao seu projeto revolucionário.
Já os movimentos feministas, imigrantes, homossexuais e ambientalistas muito poderosos apareceram para algumas organizações como vetores de protesto de substituição.
E o dilema ainda parece operante hoje, pelo menos marginal, porque por trás da “disputa pela interseccionalidade” que inflama os sociólogos, aparece um debate propriamente político:
- sobre quais bases sociais e em torno de quais objetivos reunir uma maioria popular?
- Em torno dos discriminados ou em torno dos explorados?
- Em torno dos “racializados” ao excluir os “privilegiados” (neste caso a maioria da população…)?
E assim por diante.
O historiadorGérard Noiriellembra com razão que
“a esquerda foi hegemônica toda vez que conseguiu fazer a ligação entre as reivindicações de natureza socioeconômica e as demandas relativas à luta antirracista no sentido amplo do termo”.
Poderíamos acrescentar que a esquerda se aproximou do poder apenas na esteira de movimentos sociais poderosos: junho de 1936, depois maio de 68, depois dezembro de 1995…
Para complicar a equação da “fusão das lutas”,
- a necessária transição ecológica traz sua cota de fraturas como vimos em 2019
- quando o imposto sobre o carbono, apresentado na época por socialistas e ambientalistas como o instrumento fundamental para reorientar a economia,
- provocou a revolta dos coletes amarelos, um movimento social de amplitude sem precedentes desde 1968.
“Reconstrução intelectual”
Para a esquerda francesa, reencontrar a receptividade dos trabalhadores, decididamente não é um palavrão, sem os quais não é grande coisa, exigiria, segundo Thomas Piketty,
- uma “reconstrução intelectual” que permita “colocar a questão da redistribuição, da igualdade e da propriedade no centro”.
- No mínimo, seria uma revolução radical, no sentido de voltar às origens.
Talvez seja o que está acontecendo diante dos nossos olhos nos Estados Unidos, país onde o fenômeno da bramanização da esquerda atingiu seu clímax, muito bem simbolizado pela Hillary Clinton.
O presidente Joe Biden está tentando uma síntese
- com um programa dirigido às minorias,
- contra a violência policial racista, em particular, mas não só,
- e também para as categorias desfavorecidas
com sua política de
- dobrar o salário mínimo e aumentar os empregos,
- até os trabalhadores graças à manutenção do protecionismo e o apoio ao sindicalismo na Amazon.
Ele está atacando os privilégios do capital via imposto sobre a renda e as empresas, ao mesmo tempo que se junta à coalizão pelo clima da COP21.
Será instigante acompanhar a experiência, para encontrar a esquerda perdida.
Para ler:
Clivages politiques et inégalités sociales – Une étude de 50 démocraties (1948-2020), dir. Amory Gethin, Clara Martinez-Toledano e Thomas Piketty, éd. EHESS/Gallimard/Le Seuil, col. Hautes Etudes, 2021, 624 p., 25 €.
Hervé Nathan
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/609084-thomas-piketty-em-busca-da-esquerda-perdida
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