Eis o artigo.
Washington e o Vaticano estabeleceram relações diplomáticas completas somente em 1984, o que significa que Joe Biden será o primeiro presidente católico a apontar um embaixador para a Santa Sé.
Voltando aos anos de Reagan, a seleção simboliza
- não apenas uma aliança anti-comunista entre o Papa João Paulo II e o presidente,
- mas também um abraço completo da Igreja Católica,
- um processo que começou entre a 2ª Guerra Mundial e o Concílio Vaticano II.
Desde então, no entanto, alguma coisa está mudando: a relação entre o catolicismo estadunidense e a democracia.
Considera-se a falha da chefia da hierarquia católica estadunidense – do começo da presidência de Trump até a insurreição de 06 dejaneiro – em elevar a voz em defesa do sistema democrático e o governo da lei.
A USCCB e a maioria os bispos definiram as tentativas do Partido Republicano de minar a democracia eleitoral, os direitos de voto e o dever moral para com o bem comum
- simplesmente como consequências ligeiramente desagradáveis da polarização política, e não pelo que eles realmente expressam:
- desprezo pelas instituições públicas e pela democracia ethos
- às custas da participação política dos cidadãos que mais precisam da proteção da lei.
O silêncio dos bispos é ainda mais perturbador pelo que isso sugere:
- uma complacência em relação, se não um endosso,
- à mensagem empurrada por importantes e poderosos interesses católicos na mídia, nos negócios e na política que apoiam o ataque trumpiano à democracia.
Esse ataque autoritário tem paralelos
- com o que está acontecendo agora na Rússia, Índia e Brasil,
- e influentes católicos estadunidenses o saúdam com indiferença ou, em alguns casos (como a virada antiliberal na Hungria), com deleite.
Pode se pensar que esse tipo de coisa segue o caminho do fascismo e do franquismo do século XX.
Comecei a estudar a história do catolicismo na Universidade de Bolonha em 1989, na época em que o Muro de Berlim caiu.
- Então, a aliança entre o catolicismo e a democracia parecia não se relacionar apenas com o presente, mas também com o futuro,
- enquanto os movimentos católicos nacionais ou clerical-fascistas faziam parte do passado.
- Hoje isso não parece mais verdade.
Avaliar a história da relação entre o catolicismo e a democracia nas últimas três décadas pode ajudar a ter uma noção de onde as coisas estão agora e como chegaram assim. Um bom lugar para começar seria com um livro publicado há exatamente trinta anos: A Terceira Onda, de Samuel Huntington, que eu acho que merece mais atenção dos católicos.
Huntington descreveu a democratização global como chegando em três ondas:
- a primeira no início do século XIX,
- a segunda após a 2ª Guerra Mundial e a descolonização na década de 1960
- e a terceira principalmente na década de 1980.
Ele viu uma correlação entre o cristianismo ocidental e a democracia graças às raízes religiosas dos conceitos
- da dignidade do indivíduo
- e da separação das esferas da Igreja e do Estado.
A conexão entre a expansão da democracia e a expansão do Cristianismo não era mais centrada no protestantismo, mas sim no catolicismo.
Durante e mesmo após a 2ª Guerra Mundial, as alianças da Igreja com regimes autoritários – especialmente de Franco – fizeram o catolicismo parecer antitético à democracia.
Mas então veio o Vaticano II. Foi um dos principais fatores para ocasionar a “terceira onda”, na qual Huntington viu a contribuição do catolicismo para a democracia como decisiva.
- Três quartos dos países que se voltaram para a democracia durante a “terceira onda”
- eram católicos ou abrigavam uma importante maioria/minoria católica,
- incluindo Filipinas, Chile, México, Polônia e Hungria.
O catolicismo se tornou uma força para a democracia por meio de dois canais.
O primeiro foi o Vaticano II e sua mensagem “política”:
- mudança social e participação,
- os direitos dos indivíduos,
- o bem comum.
Os segundos foram movimentos populares de base:
- Comunidades Eclesiais de Base no Brasil,
- Esquerda Cristã nas Filipinas,
- politização de base da Igreja na Polônia, Argentina e Chile.
Houve uma mudança na posição das hierarquias
- da acomodação para a ambivalência
- e, finalmente, para a oposição ao autoritarismo.
Os papados de Paulo VI e João Paulo II também desempenharam um papel; as viagens apostólicas deste último (começando com a Polônia em 1979) foram visitas pastorais, mas tiveram um impacto político também.
Huntington viu a ênfase da Igreja na dignidade universal da pessoa humana como o catalisador para a tendência para a democracia nas décadas de 1970 e 1980.
- Mas a contribuição do catolicismo nesta frente foi inseparável da contribuição do capitalismo estadunidense.
- Huntington reconheceu a economia como uma fonte significativa de mudança política:
“O logotipo da terceira onda poderia muito bem ser um crucifixo sobreposto a um cifrão”, escreveu ele.
As coisas mudaram nos trinta anos depois que Huntington escreveu o livro, pelo menos nos termos do que permanece de contribuição do Vaticano II para a cultura política da católica.
A mudança foi já evidente no fim do pontificado de João Paulo II e o começo de Bento XVI em 2005,
- com a ascensão da xenofobia na Europa
- e o nativismo dos políticos partidários e movimentos que buscavam forjar uma aliança com o catolicismo conservador.
De fato, as autoridades do Vaticano e as conferências episcopais falam contra a nova direita católica, como o historiador estadunidense Michael Driessen recentemente apontou. Mas os esforços tiveram resultados diversos.
Não impediram os católicos de votarem
- para Matteo Salvini na Itália,
- Viktor Orbán na Hungria,
- Marine Le Pen na França
- ou pela extrema-direita na Polônia.
E se, como disse Driessen,
- “essa reafirmação das identidades políticas católicas foi encontrada com evidente tensão pelas autoridades vaticanas e conferências episcopais da Europa”,
- não houve qualquer reação nos Estados Unidos para o mesmo fenômeno.
A USCCB
- é um episcopado que é cultural e teologicamente fruto do pontificado de João Paulo II,
- e, até os anos 1980, pelo menos, recebeu os ensinamentos do Concílio Vaticano II sobre a Igreja e política.
Agora nos surpreendemos com o que resta do impacto do Vaticano II sobre as relações Igreja-Estado, liberdade religiosa e participação política.
A Igreja Católica globalmente está lutando para dar sentido ao repúdio à democracia liberal, começando com o coração do catolicismo na Europa.
Mesmo a mensagem política do Papa Francisco precisa de mais clareza, pois continua oscilando
- entre a linguagem do “populismo inclusivo”
- e o conceito politicamente mais evocativo de “popularismo” – algo evidente em sua mensagem de vídeo de 15 de abril, “Uma política arraigada na vida do povo”.
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Mas não há dúvida sobre a rejeição de Francisco ao autoritarismo e sua consciência dos perigos no retorno de líderes autoritários. Também não há dúvida de que lado ele está quando se trata da defesa das instituições democráticas e da participação política de todas as pessoas.
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A posição da USCCB não é tão clara e, portanto, levanta questões sobre a força e a seriedade de seu compromisso com nossas instituições democráticas nestes tempos de ansiedade.
- A competência da Igreja no ensino de questões políticas é limitada.
- Mas está além da competência da Igreja defender o direito de o povo de votar?
O desprezo cada vez mais extremista pelas instituições democráticas não é exclusivamente católico.
- Mas afetou nossa liderança clerical e encontra justificativa fácil no fato
- de que há uma tendência nas democracias modernas de minimizar ou negar a relevância da tradição cristã e da religião em geral.
Parece que já faz muito tempo que a adoção do ethos democrático pelo catolicismo foi apoiada pelo simbolismo litúrgico e magisterial do Vaticano II e das novas instituições de governo da Igreja criadas ou sancionadas pelo Concílio.
- As conferências episcopais nacionais eram muito mais do que um novo órgão administrativo;
- elas se tornaram um modelo para uma forma não monárquica e não autoritária de governar a Igreja.
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Mas os pontificados de João Paulo II e Bento XVI enfraqueceram a autoridade das conferências episcopais perante o Vaticano. Isso também enfraqueceu a percepção dos bispos de si mesmos como um corpo colegial, de seu papel como representantes da Igreja em questões eclesiásticas e ad extra – em alguns países mais do que em outros.
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A incapacidade de abrir um processo sinodal na Igreja Católica dos Estados Unidos
- aprofunda a crise da governança eclesial,
- mas também reflete a ambiguidade da posição dos bispos sobre a crise da democracia.
É nesse contexto que o governo Biden escolhe um novo embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé. Um presidente obviamente não tem influência na sinodalidade eclesial; um presidente não pode unir a Igreja Católica.
Mas a escolha do embaixador de Biden pode certamente enviar um sinal sobre que tipo de cultura política católica este governo pretende apoiar.
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Massimo Faggioli
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Lamentavelmente boa parte do episcopado brasileiro, como também do clero, também falharam e continuam falhando na defesa dos princípios básicos de democracia em nosso país!
Geraldo Frencken