- “Não é lícito conceder uma bênção a relações ou mesmo a parcerias estáveis” de casais gays.
- Porque “as uniões entre pessoas do mesmo sexo” implicam uma “prática sexual
- (…) fora da união indissolúvel de um homem e uma mulher, aberta por si só à transmissão da vida”.
O comentário é de Marco Politi, publicado em Il Fatto Quotidiano, 16-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A ilicitude da bênção das uniões homossexuais é ainda mais imperativa
“enquanto constituiria de certo modo uma imitação ou uma referência de analogia à bênção nupcial”
no matrimônio entre homem e mulher.
Conclui o documento do antigo Santo Ofício:
“Não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”.
Fim do discurso.
Em pouco mais de duas páginas,
- são jogadas no lixo – pelo menos aparentemente –
- todas as intervenções do Papa Francisco desde a sua eleição até hoje.
“Se uma pessoa é gay, quem sou eu para julgar?… Deus te fez assim e te ama assim… Os homossexuais são filhos de Deus… Eles têm o direito de viver em uma família”.
Frases que marcaram o pontificado, incluindo a afirmação de que Bergoglio, desde os tempos como arcebispo em Buenos Aires, é a favor de uma lei sobre as uniões civis.
- Se estivesse à frente da Congregação para a Doutrina da Fé alguém nomeado por Bento XVI, se poderia dizer que a ação é fruto da oposição conservadora ao papa argentino.
- Mas o cardeal Luis Ladaria foi pessoalmente escolhido por Francisco,
- e o pontífice tem pleno conhecimento do (e aprovou o) documento, tecnicamente um “Responsum”, isto é, uma resposta a questões levantadas no âmbito eclesial.
É como quando, nos Estados, um juiz levanta uma questão de constitucionalidade, e o Tribunal Constitucional dá a interpretação inderrogável da lei.
Na realidade,
- o texto do Santo Ofício, destinado ao longo dos anos a acabar no esquecimento,
- retrata uma característica do pontificado bergogliano
- e antecipa o debate do futuro conclave.
Porque,
- sobre todos os temas que dizem respeito à problemática dos sexos e das relações de vida,
- Francisco reformulou as indicações provenientes daquele que antigamente se chamava o “Sacro Sólio”ou o “Sumo Pontífice”,
- sem mudar simultaneamente o texto da doutrina tradicional. Sem reformar o catecismo oficial.
E a razão é simples.
- Bergoglio capta as exigências que nascem da mutação dos tempos e do contexto cultural,
- considerando que o ensinamento da Igreja é algo vivo e orientado para expressar a essência da mensagem do Evangelho e, portanto, o amor a Deus e o amor ao próximo,
- mas, ao mesmo tempo, no corpo episcopal, Bergoglio não tem a maioria para mudar a letra da doutrina oficial.
Não é verdade que um papa é onipotente.
- Ele o é quando é conservador.
- Não o é quando é inovador.
A reforma sempre precisa – como demonstram os confrontos inflamados e as votações no Concílio Vaticano II – de maiorias sólidas e amplas.
Nesse contexto, nos últimos anos, assistiu-se às reviravoltas do pontificado
- – chega de veto à comunhão dos divorciados recasados,
- chega de discussões sobre os anticoncepcionais,
- chega de demonização das relações homossexuais –
implementadas por impulso de Bergoglio, embora sem serem acompanhadas pela reescritura dos textos doutrinais.
É a fotografia de uma longa transição para uma Igreja Católica diferente. E é uma antecipação do debate em vista da sucessão, na qual o front tradicionalista pressionará pela escolha de um pontífice mais “moderado” que não se “afaste” da doutrina tradicional.
Na realidade, o documento não freará a renovação em curso.
- Primeiro, porque a Congregação para a Doutrina da Fé enfatiza repetidamente que não deve haver nenhuma atitude discriminatória em relação às pessoas homossexuais, que devem ser tratadas com respeito e “delicadeza”.
- Não só isso: a declaração “não exclui que sejam dadas bênçãos a indivíduos com inclinação homossexual” (o que, na tradição secular católica, abre caminho para variantes de todos os tipos).
Mas, acima de tudo,
- o debate em curso não pode mais ser contido,
- nem a prática já em curso naquelas paróquias e dioceses
- em que uma série de bispos e párocos – sentindo-se cobertos pelas palavras de Francisco – já abençoam o projeto de vida de um casal homossexual.
Prova disso é o próprio modo como o Avvenire, o jornal da Conferência Episcopal Italiana, relata o acontecimento.
- Uma página inteira, em que naturalmente se destaca o documento vaticano,
- mas também encontra espaço uma crônica dedicada a opiniões
- que – embora evitando se contrapor frontalmente à Congregação para a Doutrina da Fé – refletem o clima de transição.
“Isso não significa que as pessoas homossexuais sejam excluídas do fato de serem abençoadas”,
- comenta o Pe. Maurizio Faggioni, professor da Academia Alfonsiana, [
- acrescentando que a teologia deve continuar se interrogando e refletindo sobre o fenômeno homossexual.
Por sua vez, o jesuíta Paolo Piva evidencia que
- o documento vaticano reconhece explicitamente nas relações homossexuais
- a “presença de elementos positivos, que, em si mesmos, devem ser apreciados e valorizados”.
O Avvenire também informa que, na Alemanha,
- o Caminho Sinodal inaugurado pelos bispos abordará a questão,
- enquanto, nesse meio tempo, o bispo de Mainz, Peter Kohlgraf, deu o seu apoio a um livro de bênçãos e de ritos para as uniões homossexuais.
Deve-se notar, paradoxalmente, que, no âmbito do catolicismo,
- são precisamente os defensores mais inflexíveis da condenação sem apelo das relações homossexuais
- que fecham os olhos para a realidade de uma Igreja na qual, desde sempre, vivem e fazem carreira trabalhadores galhardamente gays.
Um livro documentado e fascinante do sociólogo Marco Marzano, “La Casta dei Casti” [A casta dos castos] (Ed. Bompiani), ilustra
- o quanto padres, seminaristas e educadores homossexuais, capazes de “não causar escândalo”,
- se encontram à vontade na instituição eclesiástica.
.
Marco Politi
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/607579-documento-vaticano-contra-as-unioes-gays-nao-freara-a-renovacao
Leia mais:
- Vaticano diz que padres não podem abençoar casais homossexuais: por que o Papa Francisco aprovou esse decreto?
- “Esta Igreja me assusta. De Jesus nunca uma palavra contra a homossexualidade”. Entrevista com Alberto Maggi
- O que é um problema sistemático? Casais homossexuais e pedagogia da lei. Artigo de Andrea Grillo
- “Nós gays rezamos ao mesmo Deus. Ao Papa, digo que somos todos iguais”
- O que é um problema sistemático? Casais homossexuais e pedagogia da lei. Artigo de Andrea Grillo
- Bênção e poder: uma confusão ilícita. Artigo de Andrea Grillo
- Nota sobre declarações da Congregação para a Doutrina da Fé
- “É um momento bastante triste”: a resposta do coletivo LGBTI ao bloqueio do Vaticano
- Papa Francisco é o anjo da guarda da ambivalência dos fiéis
- “Quebrou-se o tabu para falar da bênção a casais homossexuais”, afirma nova secretária geral da Conferência Episcopal Alemã
- O chileno salvo por Bergoglio – “Ele foi o primeiro a acolher os homossexuais como filhos de Deus”
- Papa Francisco: “Sou a favor das uniões civis, as pessoas homossexuais têm direito a uma família”
- Especialistas advertem das consequências para os trabalhadores católicos LGBTQs após decisão da Suprema Corte
- Cardeal alemão apoia benção a relacionamentos LGBTQs
- Papa Francisco sobre as pessoas LGBT: “Se estivéssemos convencidos de que eles são filhos de Deus, as coisas mudariam muito”
- Construir uma ponte entre a Igreja e as pessoas LGBT. Entrevista com James Martin
- As armadilhas de uma teologia de gênero na Igreja
- “Quem sou eu para julgar os gays”. Conversa do Papa com os jornalistas