Alessandro Portelli – 09 Janeiro 2021n – Assalto ao Coliseu incitado por Trump – Fonte: Daqui
“Foi justamente a normalidade de ontem que preparou o desastre de hoje. O trumpismo é o resultado de meio século de demolição do sentido do bem comum e das instituições: quando Reagan dizia que o Estado é o problema e não a solução, ele abria as portas para uma antipolítica qualquer, legitimada por uma ideologia neoliberal à qual a esquerda não soube opor uma resistência significativa (às vezes, permanecendo enfeitiçada por ela, veja-se Clinton)”.
O artigo foi publicado em Il Manifesto, 08-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O comentário é de Alessandro Portelli, historiador italiano referência nos estudos de História Oral, ex-professor da Universidade de Roma “La Sapienza” e fundador do Circolo Gianni Bosio, um coletivo dedicado ao estudo do folclore, história oral e cultura popular.
Segundo ele, as raízes da atual situação “estão no lado obscuro da mais luminosa tradição estadunidense: por exemplo, em uma visão da liberdade conjugada desde o início em termos individuais (sem fraternidade, sem igualdade) e, portanto, disponível para ser lida em termos antiestatais”.
Eis o texto.
Muitos anos atrás, desarmado diante da tragédia do 11 de setembro, eu começava um artigo no jornal Il Manifesto citando Kurt Vonnegut: “Não há nada de inteligente a ser dito sobre um massacre”.
Diante dos fatos de hoje, sinto-me do mesmo modo: não há nada de inteligente a ser dito, porque não sabemos suficientemente como e por que aconteceu aquilo que aconteceu.
- Ouço comentaristas renomados que insistem nas mentiras de Trump e no fato de que os seus seguidores vivem em uma realidade alternativa feita de notícias falsas;
- tudo verdade, mas a maldade de um homem e a credulidade das massas não bastam para nos fazer entender como foi possível e como é possível que isso ainda aconteça
- – ainda mais em um país nascido do Iluminismo, onde se pensava que a democracia estivesse interiorizada e o analfabetismo havia sido erradicado há dois séculos.
Mas existe um coração de treva nos Estados Unidos.
Vemos os seus contornos, mas não conseguimos ver o que há dentro dele.
- Se hoje há mais de 70 milhões de cidadãos estadunidenses que votam em Trump, e milhares deles (até mesmo dentro da polícia) prontos para pegar em armas em seu nome,
- devemos nos perguntar de que modo nós, progressistas e liberais cultos, contribuímos para tornar possível essa realidade.
Por isso, trata-se de entrar nesse coração de treva e tentar entender, não para lhe dar razão, mas para reconhecer as causas e tentar enfrentá-las e resolvê-las.
Falar de “caipiras”, de “bárbaros”, de “inimigos da democracia”
- só serve para exorcizá-los, para afastá-los de nós,
- para dizer que nós não temos nada a ver com isso (talvez cutucando implicitamente os velhos preconceitos sobre um EUA totalmente feito de caubóis ignorantes, violentos e ingênuos)
–como se não fôssemos um país onde metade das pessoas se recusam a se vacinar, como se as mesmas pulsões que desencadearam a agressão em Washington não atravessassem toda a Europa, hoje de forma nem tão direta e violenta, mas não menos assustadora.
- Por que cada vez menos pessoas acreditam na mídia?
- Por que cada vez menos pessoas confiam nas instituições e no Estado?
- Por que cada vez menos pessoas acham que têm os meios para decidir sobre sua própria vida?
- Que mídia, que instituições, que democracia estamos lhes oferecendo?
- Por que, enquanto enchemos a boca para falar dos valores da democracia, há tão pouca democracia, e cada vez menos, na vida das pessoas?
E por que
- a essa demanda implícita de importar alguma coisa, de ter algum controle sobre a própria vida,
- não somos capazes de dar respostas democráticas, de esquerda, de igualdade, dignidade e direitos,
- e deixamos que o pior da direita alimente e cavalgue o rancor disforme com as suas explicações envenenadas e falsas?
Olhando as imagens na TV, fiquei impressionado com uma coisa que não foi enfatizada por ninguém: havia muitíssimas mulheres (três das quatro vítimas mortas nos confrontos são mulheres).
O que elas estavam fazendo lá? E me lembrei de uma manchete que havia lido no dia anterior no site da Bloomberg Wealth, não exatamente uma fonte de esquerda:
“Milhões de estadunidenses esperam perder suas casas na tempestade da Covid”.
Isso tem algo a ver?
- Diretamente, talvez não, mas, como estado de ânimo generalizado, certamente sim.
- Isso só acontece lá, depois da crise de 2008?
- O que nós fazemos diante disso?
- Elas também não são mulheres?
- Ainda tem alguém que fala de direito à moradia?
Ashly Babbit, a primeira vítima dos confrontos, era uma ex-militar que se definia como patriota, amante do seu país e da liberdade (e não vinha de um Estado vermelho de caipiras do Sudeste, mas sim da rica, culta, moderna e democrata Califórnia).
Paradoxalmente,
- enquanto agridem aquele que os nossos colunistas chamam de “templo da democracia”,
- os manifestantes pró-Trump estão convencidos de que eles são os defensores de uma democracia “roubada” pelas fraudes eleitorais –
- que eles são “we, the people”. (Nós, o Povo – NdR)
Obviamente, é um erro trágico. Mas como é possível que
- – apesar de 51 comissões, Estado por Estado, republicanas e democratas, e até expoentes da direita dura do Partido Republicano terem confirmado que as eleições foram justas
- – eles estão tão obstinados em acreditar no contrário?
- O fato é que a sensação de se estar jogando um jogo manipulado é uma sensação crescente.
Por outro lado,
- há quatro anos, não foram os líderes do Partido Democrata que lançaram dúvidas sobre a eleição de Trump,
- defendendo que ela havia sido manipulada e falseada por interferências indevidas?
Essa também foi uma primeira vez na história estadunidense e certamente não contribuiu para fortalecer a confiança no sistema eleitoral e na transparência das instituições.
E deixemos de lado a eleição de 2000,
- os votos contestados de Bush,
- a decisão da Suprema Corte que conferira autoridade à vitória de Bush…
- São coisas que vêm de longe. Trump é mais um efeito do que uma causa (um efeito que retroage e agrava as causas).
Dizer que tudo isso
- é culpa de Trump, que é um mentiroso corrupto,
- ou dos “caipiras” ingênuos que vivem na realidade alternativa das notícias falsas
- é uma forma de dizer que nós não temos nada a ver com isso (não é apenas uma doença estadunidense; Salvini, Brexit, Orbán ensinam isso),
- para não pôr em discussão a normalidade, como se valesse para o trumpismo aquilo que Benedetto Croce dizia sobre o fascismo, uma invasão dos hicsos, uma interrupção temporária depois da qual voltamos ao “business as usual”, (à normalidade da vida – NdR), ao “heri dicebamus”. (Ontem dizíamos- NdR)
Em vez disso, foi justamente a normalidade de ontem que preparou o desastre de hoje.
O trumpismo é o resultado de meio século de demolição do sentido do bem comum e das instituições:
- quando Reagan dizia que o Estado é o problema e não a solução,
- ele abria as portas para uma antipolítica qualquer,
- legitimada por uma ideologia neoliberal à qual a esquerda não soube opor uma resistência significativa (às vezes, permanecendo enfeitiçada por ela, veja-se Clinton).
Mas, antes ainda, as raízes também estão no lado obscuro da mais luminosa tradição estadunidense:
- por exemplo, em uma visão da liberdade conjugada desde o início em termos individuais (sem fraternidade, sem igualdade)
- e, portanto, disponível para ser lida em termos antiestatais.
E certamente não foi Trump quem inventou
- a guerra civil e o seu infinito pós-guerra,
- as bandeiras sulistas desfraldadas nessa semana em Washington pelos manifestantes,
- o escravismo, a segregação,
- a “southern strategy” de Nixon, a supremacia branca – ainda celebrada por inúmeras estátuas e monumentos corajosamente defendidos dos inimigos do politicamente correto…
Uma tradição literária de mais de um século prefigurou riscos de involução autoritária nos EUA –
- “Caesar’s Column”, de Ignatius Donnelly (1890),
- “O salto de ferro”, de Jack London (1907),
- “Um milhão conta redonda”, de Nathanael West (1934),
- “Não vai acontecer aqui”, de Sinclair Lewis (1935),
- até “A parábola dos talentos”, de Octavia Butler (1998),
- e “Plot Against America”, de Philip Roth (2004 e a relativa série de TV),
- e meia ficção científica distópica.
O inimaginável já havia sido imaginado; lá não havia acontecido isso (na Itália sim), mas podia acontecer e pode acontecer. As provas gerais já haviam ocorridos.
- Em 2016, uma milícia armada ocupou um parque nacional no Oregon por 41 dias para contestar o uso federal das terras públicas;
- no dia 1º de maio de 2020, uma multidão armada invadiu o parlamento de Wisconsin para protestar contra o confinamento,
- e a polícia (como nessa semana em Washington) os deixou entrar.
Ninguém reconheceu, então, esses fatos de armas como sintomas de algo mais amplo, mais profundo e grave – “você sabe como são os estadunidenses…”.
Hoje, encontramos alívio na civil tranquilidade de Biden.
O novo presidente fala de reconciliação e de recuperação,
- mas me vem à mente “Dos Passos vs. Sacco e Vanzetti”, há quase um século:
- “Bem, somos duas nações”.
Foram necessárias gerações para dividir assim os EUA. Colocá-los novamente juntos será um processo longo e difícil, e de resultado incerto.
Eu não espero tanto em Biden, mas sim na possibilidade de que alguém entre as pessoas que estão ao seu redor tenha aquela imaginação e radicalidade necessárias para apontar um caminho novo.
Não por acaso, muitos dos textos distópicos que eu mencionei acima foram escritos nos anos 1930 ou fazem referência a eles: a época de outra crise, na qual não faltaram pulsões de extrema direita, mas à qual Roosevelt soube responder com uma reviravolta, uma mudança de paradigma, um New Deal centrado
- na construção do Estado social,
- na força do movimento operário,
- na orientação à esquerda de grande parte dos artistas e dos intelectuais.
As condições mudaram (e nós também contribuímos para desmontá-las),
- mas é preciso um salto de imaginação do mesmo tipo e da mesma amplitude,
- um New Deal diferente, capaz de começar a recompor o país
- não a partir da mediação a partir de baixo,
- mas reconhecendo a principal lição do “Black Lives Matter”:
- o coração da democracia é o conflito, e a democracia não consiste em zerá-lo, mas em fazer com que ele possa ocorrer sem que uns atirem nos outros.
A reconciliação começa com o restabelecimento das regras, mas, acima de tudo, com a reinvenção delas, para que sejam verdadeiramente compartilhadas.
Alessandro Portelli