– Joseph Stiglitz acredita que a popularidade da ideologia do falecido Milton Friedman, ganhador como ele do Prêmio Nobel de economia, seja um fator significativo por trás da alta desigualdade e do crescimento modesto que caracteriza atualmente os Estados Unidos.
– Friedman dizia que em um mercado livre, uma empresa de capital aberto existe apenas para servir os próprios acionistas.
– Para Stiglitz, há evidências abundantes de que essas condições que caracterizam o mercado livre não podem ser atendidas.
– Esse debate está em curso desde a década de 1930, mas parece que o vento esteja mudando a favor daqueles que defendem que a prioridade deva ser dada à criação de valor de longo prazo, tirando a importância dos resultados de curto prazo.
No encontro anual do World Economic Forum, que foi realizado em Davos (Suíça) em janeiro, o CEO do Business Insider, Henry Blodget, explicou os motivos pelos quais chegou a hora de um “capitalismo melhor” (em inglês better capitalism, como o nome desta coluna).
A reportagem é de Richard Feloni, publicada por Business Insider, 10-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A atual desigualdade que reina nos Estados Unidos, explicou, está ligada principalmente a uma reação à estagnação que começou nos anos 1970 e durou muito tempo – fase em que a busca pelo lucro trimestral deu lugar ao chamado short-termism, ou seja, a obsessão tóxica por resultados de curto prazo.
Quando Blodget iniciou a discussão do painel que havia organizado, Joseph Stiglitz, da Columbia University, disse, referindo-se às pessoas que, em sua opinião, são responsáveis por essa ideologia preponderante:
“Quero ressaltar que, nesse período, não foi somente um grupo de acionistas ativistas, mas também Milton Friedman”, o falecido economista e ganhador do Prêmio Nobel (como Stiglitz). “E Friedman estava errado.”
Em sua influente coleção de ensaios de 1962, Capitalismo e Liberdade, Friedman proclamou que em uma economia livre
“uma empresa tem uma, e apenas uma, responsabilidade social: usar seus recursos e conduzir negócios destinados a aumentar seus lucros, desde que respeite as regras do jogo, ou seja, desde que pratique uma concorrência livre e aberta, sem enganos nem fraudes”.
Entramos em contato com Stiglitz depois do painel de Davos: ele nos disse que
- a declaração de Friedman “não se baseava em nenhuma teoria econômica”,
- depois nos deu algumas informações sobre as origens desse debate.
A “mão invisível” pode existir, mas não no mundo real
Friedman fez essa afirmação desenvolvendo uma passagem decisiva do texto crucial de Adam Smith A riqueza das nações (1776), que falava de uma “mão invisível“.
Para Smith, um indivíduo que promove seus próprios interesses é
- “guiado por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua intenção.
- Ao buscar seu próprio interesse, frequentemente ele promove o da sociedade de maneira mais eficiente do que quando realmente tem a intenção de promovê-lo.
- Nunca vi pessoas que pretendiam fazer negócios pelo bem da sociedade, trazer efetivamente algum bem”.
Stiglitz apontou que de fato a existência da mão invisível foi “demonstrada” em 1954 pelos economistas Kenneth Arrow e Gerard Debreu.
- Os dois conseguiram demonstrar a existência de um equilíbrio entre oferta e demanda em uma economia livre e competitiva –
- mas também deixaram claro que essa situação
- só pode ocorrer na presença de determinadas condições relacionadas à economia e ao comportamento dos consumidores.
E de acordo com Stiglitz, este último ponto é essencial.
“Mais tarde, alguns de nós, no final da década de 1960, apresentaram a pergunta: “Pois então, o que acontece se essas condições não forem atendidas?’”, explicou ele ao Business Insider.
Contou que ele e o economista Sandy Grossman estudaram a questão ao longo dos anos 1970. Em 1980, publicaram um artigo no qual declaravam que,
- embora o equilíbrio de mercado possa existir em teoria,
- é “impossível” que exista na realidade dentro de uma economia competitiva.
Com base nesse raciocínio, o argumento de Friedman perde toda a validade. Consequentemente, o fato de uma empresa existir com o único propósito de beneficiar os acionistas não dará, ao contrário do que Friedman defendia, qualquer benefício aos outros stakeholder, como os funcionários, os consumidores e a sociedade como um todo.
Stiglitz respeitava Friedman (que morreu em 2006) por seu trabalho sobre o consumo, que lhe rendeu o Prêmio Nobel; escreveu isso em seu livro de 2012, O preço da desigualdade, mas os dois tiveram várias discussões sobre a ideia de livre mercado.
- “Lembro-me de longas discussões com ele sobre as consequências das informações imperfeitas ou sobre os mercados de risco incompletos;
- meu próprio trabalho e o de numerosos colegas mostraram que, na presença de tais condições, os mercados geralmente não tinham um bom desempenho.
- Friedman simplesmente era incapaz de entender os resultados que emergiram ou não estava disposto a fazê-lo”.
No entanto, as ideias de Friedman se popularizaram nos Estados Unidos por várias décadas.
Keynes vs. Escola de Chicago
Stiglitz nos explicou que quando cita o que em sua opinião é o problema de Friedman, o toma como figura de referência de um movimento que se aproveitou das tendências sociais citadas por Blodget. Esse movimento foi liderado pela Escola de Chicago, que formulou a ideologia do livre mercado na Universidade de Chicago em meados da década de 1920.
Segundo Stiglitz, os norte-americanos, principalmente os de direita, abraçaram a visão da Escola de Chicago porque se apresentava como a solução eficiente para o problema de como estimular uma economia estagnada.
No âmbito dessa ideologia de livre mercado, a busca de valor a curto prazo é, ao mesmo tempo, uma busca do valor a longo prazo. Se essa ideia for aceita, a atribuição da prioridade aos lucros de curto prazo se dá por meio da otimização da gestão gerencial e dos gastos, o que permite que a empresa cresça e por sua vez proporcione retornos maiores, um maior número de empregos e outros benefícios para a sociedade, bem como melhores produtos.
Stiglitz observou que essa visão é baseada na negação de uma das crenças centrais de Keynes.
O economista britânico John Maynard Keynes publicou seu revolucionário livro A teoria geral do emprego, do juro e da moeda em 1936, logo após a Grande Depressão. No texto, ele distinguiu entre
- valor de curto prazo
- e valor de longo prazo;
além disso também
- expressou sua frustração com a forma como o mercado de ações estadunidense incentiva as empresas de capital aberto a priorizar os lucros de curto prazo,
- preferíveis do ponto de vista da maioria dos investidores atuais, em relação aos de longo prazo, que são preferíveis do ponto de vista de toda a sociedade.
A premissa básica do debate entre Keynes e seus colegas é idêntica àquela em torno da qual gira o debate atual.
“O objetivo social do investimento especializado deveria ser o de derrotar as forças obscuras do tempo e da ignorância, que envolvem o nosso futuro”, foi a advertência lançada por Keynes.
A vitória de Friedman
Na década de 1970, mais e mais norte-americanos em posições de poder começaram a gravitar em torno das ideias da Escola de Chicago, e Friedman tornou-se conselheiro do presidente Ronald Reagan.
- Friedman não era apenas uma figura estimada e ouvida pelo líder do chamado “Mundo livre“,
- mas também as teorias da Escola de Chicago sobre legislação para promover a eficiência do mercado tiveram uma boa aceitação.
Em seu livro de 2015, Rewriting the Rules of the American Economy, Stiglitz escreveu que
- a normalização da supremacia dos acionistas foi consolidada durante a presidência de Reagan
- por meio de modificações introduzidas nas leis federais nos impostos sobre a renda e aquelas sobre os instrumentos financeiros,
- incluindo um abrandamento das normas antitruste. Isso promoveu o crescimento de investidores ativistas.
“Se tudo isso tivesse levado a empresas mais eficientes e inovadoras, teria sido uma coisa”, escreveu Stiglitz.
- “Mas, na realidade, os novos investidores ‘ativistas’ insistiram em ingressar nos conselhos de administração
- e pressionaram no management das empresas para que seguisse políticas consideradas mais shareholder-friendly,
- ou seja, mais favoráveis aos investidores de curto prazo (os acionistas) – incluindo o aumento dos dividendos e dos buyout”.
A Securities and Exchange Commission (SEC) continuou a seguir essa orientação até o início dos anos 1990.
E embora a correlação cada vez mais significativa entre remuneração dos CEOs e desempenho na bolsa tivesse em aparência o objetivo de garantir a accountability dos CEOs perante seus acionistas, de acordo com Stiglitz, ela se materializou mais como
- “um incentivo para manipular os preços das ações empregando fundos empresariais para recomprem as próprias ações com o objetivo de aumentar os preços”.
- É assim que passamos de uma relação média de 20 para 1 entre remuneração do CEO e remuneração de um funcionário de nível médio em 1965 para a atual proporção de 295 para 1.
Para Stiglitz, o fato de alguns indivíduos ganharem tanto dinheiro não é moralmente ultrajante em si; o problema é que isso está acontecendo às custas de toda a economia.
Por que agora, então?
O ganhador do Prêmio Nobel nos disse que
- este debate que já se arrasta há uma década sobre como encontrar o equilíbrio entre criação de valor a curto e a longo prazo
- está recentemente retomando força nos Estados Unidos devido à política reprovável e aos odiosos conflitos de classe que decorrem da desigualdade de renda;
- outro motivo é que as pessoas em posições de poder estão observando o quadro geral e estão percebendo que algo precisa mudar.
E, independentemente do desempenho obtidos pelos mercados de ações neste ano, a economia como um todo não está indo muito bem, argumenta Stiglitz, quando for considerada da perspectiva do crescimento do PIB.
“Quando estávamos crescendo a 4%, poderíamos ter conseguido crescer ainda mais rapidamente”, disse ele. “Mas colocamos no bolso o 4% e nos congratulamos. Mas agora que estamos crescendo a 2-2,5%, depois de uma fase de crescimento de 3,5%, a pergunta que surge espontaneamente é: ‘O que aconteceu? Há algo errado?'”.
De acordo com Stiglitz, os desenvolvimentos a que estamos assistindo hoje são em grande parte o resultado das ideias defendidas por pessoas como Friedman, que pareceram muito promissoras para as pessoas que estavam no poder nos anos 1980. Essa abordagem contribuiu de forma muito significativa para o atual mix de desigualdade e crescimento modesto nos EUA.
O economista disse que,
- se é verdade que os CEOs não serão capazes de resolver o problema da desigualdade sozinhos,
- também é verdade que o propósito para o qual existem na sociedade é o de fazer crescer a economia,
- e cada vez mais CEOs estão percebendo que precisam aportar algumas mudanças.
É por isso que, por exemplo, alguém como o CEO da BlackRock, Larry Fink, na função de principal executivo da maior empresa de gestão patrimonial do mundo, se sentiu no dever a se posicionar contra a obsessão pelo curto prazo. Em uma carta aos CEOs das empresas de capital aberto no início deste ano, Fink anunciou que a BlackRock só fará negócios com empresas que tenham definido claramente estratégias de longo prazo que tragam algum tipo de benefício para a sociedade.
“Se não tiver claro quais são seus objetivos, nenhuma empresa, seja de capital aberto ou não, pode realizar plenamente seu potencial”, escreveu Fink.
- “Acabará por perder a autorização para operar concedida por seus principais stakeholders.
- Ela cederá às pressões orientadas ao curto prazo para que distribua seus lucros e, ao fazê-lo, sacrificará os investimentos realizados para o crescimento dos funcionários, para a inovação e para as despesas de capital – investimentos necessários para um crescimento de longo prazo.
- Permanecerá exposta às campanhas de ativistas que expressarão um propósito mais claro, mesmo que tal propósito apenas promova a realização de objetivos mais limitados e de curto prazo.”
De acordo com Stiglitz, a carta de Fink e outras declarações similares feitas por grandes empresas como a Unilever
- não são um convite a afundar na autocomplacência e se congratular mutuamente,
- mas decorrem de uma sensação de urgência – ou seja, a sensação de que existe a necessidade urgente de abandonar a doutrina de Friedman.
Para o economista, o cerne desse debate dentro da direita estadunidense permaneceu inalterado desde os anos 1930; só que o mundo de hoje é muito diferente.
“Como diz a Bíblia: ‘Não há nada de novo sob o sol’”, disse Stiglitz com uma risada. “Mas o contexto hoje é novo”.
Richard Feloni
Leia mais:
- As principais contribuições de Milton Friedman à Teoria Monetária: parte 1. Artigo de Roberto Camps Moraes. Cadernos IHU ideias, Nº 101
- As principais contribuições de Milton Friedman à Teoria Monetária: parte 2. Artigo de Roberto Camps Moraes. Cadernos IHU ideias, Nº 104
- A crise atual não pode ser atribuída ao capitalismo e às idéias econômicas liberais. Entrevista especial com Roberto Camps Moraes. Revista IHU On-Line, Nº 276
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