Artigo para Discussão
Laura Capriglione – 30 Outubro 2020
A reportagem é de Laura Capriglione, publicada por Jornalistas Livres, 28-10-2020.
Católicas Pelo Direito de Decidir existem desde 1993 e se caracterizam pela defesa intransigente da descriminalização e legalização do aborto. Segundo o grupo, no interior do catolicismo
- “há vozes diversas, há teologias diversas”.
- “Essa pluralidade existe, ainda que o pensamento único fundamentalista queira negá-la”, dizem elas, que se reivindicam feministas.
As Católicas falam em fundamentalistas
- e foi exatamente uma organização fundamentalista dessas, a Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura
- que resolveu levar aos tribunais sua contrariedade com o nome da ONG feminista.
O Centro Dom Bosco
- parece não confiar muito na fé do rebanho católico
- e é reincidente em tentar calar divergências religiosas na Justiça,
- em vez de convencer os corações dos fiéis.
Foi esse grupo da ultra-direita católica que processou a Igreja Universal do Reino de Deus por causa de uma revista em quadrinhos (!!??!) chamada “A Força”, porque conteria “mentiras e ofensas à Igreja Católica”. Os inquisidores do Centro Dom Bosco queriam que a Justiça retirasse de circulação a publicação. Perderam!
Também foi o Centro Dom Bosco que processou o coletivo de humoristas Porta dos Fundos, depois que este produziu um especial de Natal em que retratou Jesus como homossexual. Os “guerreiros da fé” do Centro Dom Bosco queriam retirar o especial de Natal da plataforma de streaming Netflix e bani-lo pela eternidade. Mas perderam também.
Agora,
- o grupo colhe uma recentíssima vitória, já que ainda passível de recurso, com a decisão do TJ de São Paulo.
- Se prevalecer, as Católicas terão de adequar o estatuto social e retirar a expressão “católicas” de seu nome em 15 dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000.
O relator, desembargador José Carlos Ferreira Alves, escreveu um textão de 61 páginas para justificar o acolhimento do pedido do Centro Dom Bosco.
Coalhado de referências
- ao Código Canônico,
- ao Catecismo,
- a textos de clérigos ultraconservadores,
- a homilias papais,
- a ideólogos da Opus Dei
e até, pasme-se, a Olavo de Carvalho, com a citação de sua obra “Católicas, uma ova”, lavrada naquele estilo inconfundível pela falta de educação,
- o relatório do desembargador parece esquecer que o Brasil é um País laico
- e não uma pequena paróquia de um obtuso rincão conservador.
Quer o desembargador católico que
- “nenhuma associação adote a designação de ‘católica’,
- a não ser com o consentimento da autoridade eclesiástica competente,
- segundo as normas do cânone 312”[do Código Canônico].
O Código de Direito Canônico é o conjunto das normas que regulam a organização da Igreja Católica, a hierarquia do seu governo, os direitos e obrigações dos fiéis e o conjunto de sacramentos e sanções que se estabelecem pela infração das mesmas normas.
Impor aos cidadãos brasileiros a obediência a esse tal Código Canônico é um ultraje à Constituição do Brasil.
Ferreira Alves diz que
- o uso da expressão “católicas”
- constitui “flagrante ilicitude e abuso de direito (…)
- pela notória violação à moral, boa-fé e bons costumes na atuação [da ONG]”.
Trata-se de acusação gravíssima que, entretanto, não dispõe de um único argumento que a ponha em pé.
A guerra contra as mulheres: uma história de violências
- Acusar mulheres, identificando-as a seres imorais, dotados de má-fé e de comportamento maligno
- tem dado, desde sempre, ensejo a perseguições e a toda série de violências e iniquidades (incluindo a tortura)
- praticadas contra o gênero feminino desde o século 12.
Agora não é diferente.
As Católicas Pelo Direito de Decidir, que conheço desde seus primórdios, pela catequese feminista de Maria José Rosado, fundamentam sua militância na crença de que
- a Igreja de 2.000 anos é capaz de errar (muito)
- e de se auto-reformar mediante a crítica —muitas vezes heroica— dos dissidentes (ou hereges).
Foi assim com Giordano Bruno e Galileu Galilei, opositores da tese segundo a qual a Terra estaria no centro do Universo.
- Pela sua petulante defesa da Ciência, Galileu acabou condenado (à prisão – NdR) por desobediência e por difundir conteúdos contra a doutrina católica.
- Com Giordano Bruno, foi pior. A Inquisição o considerou culpado e ele foi queimado na fogueira no Campo dei Fiori, em Roma, em 1600.
No ano 2000, o Papa João Paulo II
- finalmente pediu desculpas por todos os erros cometidos pela Igreja Católica nos últimos 2.000 anos,
- incluindo o julgamento de Galileu Galilei pela Inquisição.
Será que João Paulo II não era muito católico?
Mas tem muito mais erros!
A mesma Igreja Católica ainda hoje condena
- o divórcio,
- as pesquisas científicas com embriões humanos,
- a eutanásia
- e os contraceptivos artificiais,
- o sexo antes do casamento,
- a homossexualidade
- e o uso de preservativos.
Apesar disso, o Papa Francisco
- acaba de dar seu OK às uniões civis entre homossexuais,
- mostrando que a Igreja (também ela) é permeável ao espírito do tempo,
- e que a luta dos homossexuais católicos por reconhecimento valeu a pena.
Será que Bergoglio também não é muito católico?
As Católicas consideram-se católicas, mas católicas que lutam contra o machismo e a misoginia das instituições católicas, que
- proíbem a ordenação sacerdotal de mulheres,
- mantêm o celibato clerical
- e estão na base dos milhares de casos de abusos sexuais cometidos contra meninos e meninas em todo o mundo.
Quem são o desembargador José Carlos Ferreira Alves e seus colegas na 2ª Câmara de Direito Privado, José Joaquim dos Santos e Álvaro Passos, para dizer que elas não podem mais se dizer católicas?
Ainda mais usando como argumento um código estranho ao ordenamento jurídico do Brasil, como é o Código Canônico?
Ou será que vamos também usar o “Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan Kardec, ou “As 95 Teses”, de Martinho Lutero, para orientar os juízes sobre quais condutas serão consideradas lícitas ou ilícitas pelos tribunais brasileiros?
A decisão do TJ de São Paulo é mais um barbarismo a atestar que a generosa Constituição de 1988 está sob grande ameaça. É preciso resistir. Ou logo as fogueiras serão acesas!
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Laura Capriglione
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/604223-fundamentalistas-perseguem-ong-de-catolicas-e-justica-faz-coro
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