| 4 Out 20
O Papa Francisco, neste sábado, 3, em Asssi, quando assinava a encíclica. Foto reproduzida da transmissão do Vatican Media no canal YouTube.
Estamos provavelmente perante o testamento político-social do Papa Francisco:
- se a Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, é talvez o texto mais inovador do seu pontificado, na proposta que faz à Igreja Católica e ao mundo no âmbito da ecologia integral, a nova encíclica
- Fratelli Tutti, ontem assinada em Assis e que foi divulgada pouco antes das 11h30 deste domingo, 4 de Outubro, é uma síntese do pensamento do Papa argentino acerca da fraternidade e da amizade social.
Ou seja,
- é a sistematização do pensamento político e social do Papa,
- no qual cabe um diagnóstico vasto sobre a situação no mundo, no que diz respeito a problemas a que ele tem dedicado muitas das suas intervenções:
- migrantes e refugiados, populismos, racismo, novas escravaturas, tráfico de seres humanos, violência sobre mulheres e crianças, pena de morte
- – e também, de novo, o drama ecológico.
Por contraste, o documento
- propõe que a fraternidade e a amizade social sejam lidas com chaves como o respeito pelos direitos humanos, a busca incessante da paz, a proposta da amabilidade, a valorização da função social da propriedade ou o perdão.
- E faz sugestões concretas como a da eliminação da pena de morte no mundo, a constituição de um fundo contra a fome financiado pelas despesas militares, do fim das armas nucleares e da prisão perpétua, a reforma
“quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações”.
Na fundamentação teológica e espiritual do tema, o Papa Francisco toma a parábola do bom samaritano, contada por Jesus no evangelho de São Lucas: uma história em que um homem vítima de assaltantes é ajudado por um samaritano, símbolo de alguém proscrito pelos judeus, depois de dois religiosos do tempo terem passado ao largo, sem ajudar.
“Esta parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos de tomar para reconstruir este mundo”, escreve o Papa. “Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada.”
“Num contexto mais amplo de reflexão”
O próprio Francisco assume, logo no início do texto, que ele constitui uma síntese do seu pensamento:
- “As questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social sempre estiveram entre as minhas preocupações”, escreve o Papa, que a elas se referiu “repetidamente nos últimos anos e em vários lugares”.
- E acrescenta: “Nesta encíclica, quis reunir muitas dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão.”
Este documento é, no entanto, mais do que uma simples colagem de discursos ou intervenções, procurando sistematizar e relacionar os temas uns com os outros. Mas há, entretanto, uma outra influência na sua origem:
- “se na redacção da Laudato si’ tive uma fonte de inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com grande vigor o cuidado da criação,
- agora senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi,
- para lembrar que Deus ‘criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos’.”
O encontro de Fevereiro de 2019 que o Papa refere, e a declaração conjunta que dele surgiu, precisamente sobre a fraternidade humana, não foi um “mero acto diplomático”, mas resultou de uma “reflexão feita em diálogo” e de um “compromisso conjunto”, diz.
Por estas razões, o Presidente da República (de Portugal – NdR), Marcelo Rebelo de Sousa escreve, num comentário exclusivo para o 7MARGENS, que esta nova encíclica de Francisco
“é um grito brutal e, ao mesmo tempo, a expressão de um poder mobilizador como nenhum dos sucessivos documentos do Papa Francisco.”
“Único caminho para o desenvolvimento e a paz”
Oração do Angelus do Papa: “A fraternidade é o único caminho para o desenvolvimento e a paz”. Foto: Direitos reservados.
Na alocução que fez há pouco mais de uma hora, após a oração do Angelus, o Papa referiu-se à inspiração franciscana da Laudato Si’. Agora,
- a Fratelli Tutti propõe “a fraternidade humana como único caminho na direcção do desenvolvimento integral e da paz”,
- como já tinham indicado os últimos papas, disse, referindo João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.
Uma edição da encíclica iria mesmo ser oferecida aos peregrinos que estavam na praça, disse Francisco, marcando também o recomeço da edição em papel do L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, suspensa desde Março por causa da pandemia.
Com uma introdução e oito capítulos, o Papa começa por referir a motivação do texto da encíclica:
- Francisco de Assis convidava “a um amor que ultrapassa as fronteiras da geografia e do espaço”,
- no qual declarava “feliz quem ama o outro, ‘o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si’”.
- Por isso, a encíclica propõe “o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita”.
A encíclica recorda, a propósito, o encontro de Francisco de Assis com o sultão do Egipto, Malik al-Kamil, há 800 anos. Um episódio que mostra o “coração sem fronteiras” do santo, “capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião”.
O texto faz, depois, um diagnóstico pesado da situação:
há inúmeras situações em que
- as pessoas são descartadas, os direitos humanos não são “suficientemente universais”, predomina o conflito e o medo;
- a globalização sem rumo só beneficia alguns e contribui para o aumento das desigualdades, facto agravado com a pandemia que desde Janeiro atinge o mundo;
- aumentam as novas escravaturas em que as pessoas são privadas da liberdade e tratadas como objecto;
- a pandemia aumentou também a situação de marginalização que os mais velhos têm sido sujeitos;
- migrantes e refugiados são vítimas de uma cultura de muros ;
- populismos, racismos e discursos de ódio estão em crescendo;
- deve mudar-se o paradigma do dogma neoliberal do mercado que “não resolve tudo” e reflecte um pensamento “pobre e repetitivo”;
- nas redes sociais e com as novas tecnologias aumentou a agressividade, a mentira e a falta de sabedoria,
como se analisa neste outro texto no 7MARGENS.
“Embatemos no homem ferido”
O bom samaritano, mosaico de Marko Rupnik. Foto: Direitos reservados.
Para contrariar esta situação, Francisco propõe a parábola do bom samaritano como uma história que se vai repetindo ao longo dos tempos e também hoje de novo.
- “Enquanto caminhamos, inevitavelmente embatemos no homem ferido. Hoje, há cada vez mais feridos.
- A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projectos económicos, políticos, sociais e religiosos.
- Dia a dia enfrentamos a opção de ser bons samaritanos ou viandantes indiferentes que passam ao largo.
- E se estendermos o olhar à totalidade da nossa história e ao mundo no seu conjunto,
- reconheceremos que todos somos, ou fomos, como estas personagens: todos temos algo do ferido, do salteador, daqueles que passam ao largo e do bom samaritano.”
É com esta base que ele faz, depois, a proposta de “pensar e gerar um mundo aberto”, título do capítulo III.
- Sociedades, povos e nações devem, tal como os indivíduos, acolher quem é diferente, pobre, marginalizado, vítima…
- E, recuperando o conceito de Paul Ricoeur em Le Socius et le Prochain, sugere que,
- em vez de um mundo de sócios, unidos apenas por interesses, se construa um mundo fraterno, de igualdade e liberdade para todos.
“O individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum.”
Um dos subtítulos leva mesmo o título da trilogia da Revolução Francesa, o que não deixa de ser significativo num documento papal, tendo em conta a oposição feroz que a Revolução dedicou à Igreja Católica e que esta, durante muito tempo, devolveu.
Neste capítulo, cabe ainda uma reflexão de fundo sobre
- a necessidade de recuperar a noção de função social da propriedade,
- um conceito que integra a doutrina social da Igreja,
- mas que tem estado muito esquecido e arredado das propostas concretas de muitos âmbitos católicos.
Neste capítulo, o Papa refere:
- “Alguns nascem em famílias com boas condições económicas, recebem boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis capacidades. Seguramente não precisarão dum Estado activo, e apenas pedirão liberdade.
- Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades.
- Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica.”
A verdade, acrescenta ainda, é que
- “a simples proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela, torna-se um discurso contraditório.
- Palavras como liberdade, democracia ou fraternidade esvaziam-se de sentido.
- Na realidade, enquanto o nosso sistema económico-social ainda produzir uma só vítima que seja e enquanto houver uma pessoa descartada, não poderá haver a festa da fraternidade universal”.
“A grande questão é o trabalho”
Um mineiro a fazer triagem do cobalto, na RDCongo: a questão é dar dignidade aos mais pobres pelo trabalho e não ficar pela ajuda de emergência, diz o Papa. Foto © Amnesty International e Afrewatch
A globalização, os seus limites e potencialidades, e a sua articulação com o âmbito local, são o tema do quarto capítulo:
- “É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade.
- Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra.
As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos:
- o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstracto e globalizante (…);
- o outro extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas,
- incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras.”
Para conseguir tais desideratos, é preciso uma “política melhor”, sugere o Papa.
Recusando os populismos que crescem pelo mundo, Francisco sugere, no entanto, que o conceito de povo não deve ser abandonado, pois isso significaria a traição ao próprio fundamento da democracia:
- “a pretensão de introduzir o populismo como chave de leitura da realidade social contém outro ponto fraco:
- ignora a legitimidade da noção de povo”, escreve o Papa.
- “A tentativa de fazer desaparecer da linguagem esta categoria poderia levar à eliminação da própria palavra ‘democracia’,
- cujo significado é precisamente ‘governo do povo’.
Contudo, para afirmar que a sociedade é mais do que a mera soma de indivíduos, necessita-se do termo ‘povo’”.
Neste aspecto, diz o Papa, “a grande questão é o trabalho”.E acrescenta:
“Ser verdadeiramente popular – porque promove o bem do povo –
- é garantir a todos a possibilidade de fazer germinar as sementes que Deus colocou em cada um,
- as suas capacidades, a sua iniciativa, as suas forças.
- Esta é a melhor ajuda para um pobre, o melhor caminho para uma existência digna.
Por isso, insisto que
- ‘ajudar os pobres com o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências.
- O verdadeiro objetivodeveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho.”
Ao contrário, o
“pensamento pobre, repetitivo” do neoliberalismo “que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio” reproduz-se sempre “a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘derrame’ ou do ‘gotejamento’ – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais.”
E o Papa coloca mesmo em causa a ideia da simples redistribuição, que
“não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social”.
Perdoar, mas não esquecer
A nuvem nuclear sobre Hiroxima: há tragédias que não de podem esquecer. Foto: Direitos reservados
O amor deve ter também uma dimensão política, quer ao nível nacional, quer internacional, sugere ainda.
- E também o diálogo e a amizade social,
- como busca do consenso e da verdade e método para a construção de uma cultura do encontro,
- devem incorporar o trabalho político.
É nesta fase que o Papa propõe que se recupere a noção e a prática da amabilidade, como “libertação
- da crueldade que às vezes penetra nas relações humanas,
- da ansiedade que não nos deixa pensar nos outros,
- da urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser felizes”.
Na linha do que já os seus antecessores João Paulo II e Bento XVI tinham sugerido, também o perdão é uma atitude que deve ser levada para a política, sugere Francisco, no capítulo dedicado à forma de construir o “artesanato da paz”.
- O perdão, mas não o esquecimento, diz, referindo que não se podem acontecimentos como as tragédias da Shoah ou dos bombardeamentos de Hiroxima e Nagasáqui.
- A Shoah, concretamente, “não deve ser esquecida”,
- pois é o “símbolo dos extremos aonde pode chegar a malvadez do homem, quando, atiçado por falsas ideologias,
- esquece a dignidade fundamental de cada pessoa, a qual merece respeito absoluto seja qual for o povo a que pertença e a religião que professe”.
Também os absurdos da guerra e da pena de morte integram este capítulo:
“Hoje, afirmamos com clareza que a pena de morte é inadmissível e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo”.
Violência não tem fundamento na religião
Vigília pelas vítimas dos atentados contra o Charlie Hebdo: a violência em nome de Deus é uma deformação dos verdadeiros fundamentos das religiões. Foto © Ozias Filho. (Tradução: De todo o coração, com Charlie Hbdo – NdR)
Finalmente, o último capítulo é dedicado ao papel das religiões na construção de um mundo mais fraterno. De novo, surge aqui a recusa absoluta do uso da violência em nome da religião:
- “Como crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial:
- a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspectos da nossa doutrina, fora do seu contexto,
- não acabem por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro.”
E reafirma Francisco: “A verdade é que a violência não encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas deformações.”
Neste capítulo, cabe ainda o apelo a que a liberdade dos cristãos seja respeita nos países onde estes são minoria, tal como a de outras religiões é favorecida em países de maioria cristã. E também a que a voz da religião e da espiritualidade tenha expressão pública:
- “Não se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os cientistas.
- Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria.
- Os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora,
- mas de facto são desprezados pela miopia dos racionalismos.”
A encíclica termina retomando os apelos feitos na declaração assinada com o imã Ahmad Al-Tayyeb, em nome dos pobres, dos miseráveis, dos órfãos e viúvas, dos refugiados e exilados, da fraternidade e da liberdade:
“Em nome de Deus e de tudo isto, declaramos adoptar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério.”
António Marujo
Belíssima encíclica. Muito pertinente para o momento. Completa as outras duas anteriores. a primeira, Lumen Fidei, sobre a fé. A segunda, Laudato si, sobre o cuidado com a casa comum (o planeta) e esta agora, Fratelli tutti, sobre a fraternidade e amizade social. Eu e Deus, Eu e o Mundo, Eu e os outros. Assim, temos um “manual” de vida cristã para os dias de hoje.