Por princípio sou contra todas as formas de teocracia, incluindo as cristãs. Esses ideais estribam-se em equívocos teológicos, em erros de interpretação histórica ou, em muitos casos, em inconfessáveis aspirações de poder.
Demasiados líderes cristãos das Américas andam equivocadamente a viver em tempos anteriores ao séc. XVIII, quando ainda não se havia implantado o conceito de estado laico e a religião vivia amancebada com o poder político. A Modernidade trouxe esse separar de águas que se tornou inovador então em termos de dinâmica histórica.
Como tenho dito recorrentemente, o conceito procede do próprio Jesus Cristo quando afirmou:
“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20:25).
Isto não tem apenas que ver com os impostos cobrados na província da Judeia e devidos ou não a Roma.
- Tem que ver com uma visão do que é o reino de Deus,
- que não coincide com a sociedade em geral,
- em suma, com a distinção clara entre o religioso e o secular.
Em nenhum texto bíblico se defende a mais pálida ideia de que os religiosos devem dirigir os destinos de toda uma sociedade. Se olharmos para o Antigo Testamento verificamos que a teocracia hebraica constituiu um caso único na história da Revelação dada a natureza da aliança estabelecida entre Iavé e Abraão, extensível à sua descendência. Nunca foi nem é um modelo para as demais sociedades. Pelo contrário, trata-se da excepção que confirma a regra.
Por outro lado, se nos concentramos no Novo Testamento
- observamos como Jesus Cristo,
- os seus discípulos e apóstolos, nunca consideraram sequer por um momento qualquer forma teocrática de governo.
- Pelo contrário posicionaram-se sempre à parte dos poderes públicos,
- pedindo a Deus pelos agentes políticos e autoridade em geral.
Imagem: Nei Alberto Pies
De onde virá então essa quimera da teocracia cristã, quando toda a gente sabe o que aconteceu na Idade Média,
- quando o papa punha e depunha reis
- numa Europa de cruzadas, inquisições, abusos de toda a espécie e perseguições?
Santo Agostinho idealizou a “Cidade de Deus”, em termos teóricos, mas Calvino tentou criar uma teocracia em Genebra e deu mau resultado.
A sede de poder – invocando embora pretextos morais – é que parece realmente animar as actuais lideranças, que se esforçam por criar partidos políticos ou por militarem neles, por se apresentarem a cargos políticos electivos, e a quererem impor agendas de inspiração religiosa. Faz lembrar os monarcas do mundo antigo que governavam em nome dum suposto direito divino, quando não se consideravam a si mesmos como divindades.
Vamos ser claros. Isto só acontece porque as igrejas estão a falhar a sua vocação.
Damares Alves (imagem acima:Daqui) – provavelmente o elemento mais alucinado do governo brasileiro – afirmou:
“É o momento da igreja governar”.
Pergunto:
- qual delas?
- Com que mandato?
- Com que legitimidade?
- Com que objectivo?
Os cristãos são chamados a outra tarefa, que é influenciar o mundo e nunca a governá-lo:
- “Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens.
- Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte. Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa.
- Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus” (Mateus 5:13-16).
Parece que já não lhes basta pregarem a Palavra, pastorearem o seu rebanho, ainda querem o poder e as benesses que normalmente lhe estão associadas, incluindo a notoriedade.
As preocupações dos cristãos conscientes da sua missão e que pretendem ser fiéis à sua vocação são outras, reflectir ao mundo a imagem de Jesus Cristo:
“Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor (…)” (2 Coríntios 3:18).
Este é o único “caminho do meio” de que fala o teólogo Tomás Halík:
“Não existe nada mais importante no nosso mundo de hoje, do que encontrar um caminho entre o fundamentalismo religioso, por um lado, e o secularismo fanático, por outro.”
Se o secularismo fanático ou laicismo é uma praga, o fundamentalismo religioso não o é menos.
O que se passa em boa parte das igrejas nos EUA, Brasil e América Latina é altamente preocupante.
Em vez de serem o sal que tempera e preserva a sociedade estão a ser a malagueta que a afasta e desregula. Um pastor anglicano do Brasil afirma mesmo que
- o movimento evangélico é hoje um dos maiores perigos para a sociedade brasileira e o estado laico
- devido ao seu potencial fundamentalista:
“Malafaia, Feliciano, Rodovalho, Macedo, R.R. Soares e outros nomes menores que estão despontando (e outros que ainda despontarão) são a pior espécie de fanatismo religioso possível.
A única diferença entre esse grupo e o fundamentalismo islâmico está nos referenciais religiosos nos quais se apoiam.”
Que Deus nos livre!
José Brissos-Lino
é diretor do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo.
Fonte: https://setemargens.com/contra-todas-as-teocracias/
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