Leonardo Barros Soares – 10 Agosto 2020 – Foto: José Cruz/Agência Brasil
Eis o artigo.
Começamos a reunião de um grupo de pesquisa do qual participo fazendo o levantamento das lideranças indígenas recém-vitimadas pelo Covid-19. Relembro de Nelson Rikbaktsa, jovem e enérgica liderança na área da saúde indígena da região noroeste do Mato Grosso, e de Aldecir Arara, este voltado para a temática escolar.
Um dos participantes menciona os anciões que faleceram no nordeste de Roraima.
Outra colega rememora
- seus anos de trabalho com o cacique Aritana Yawalapiti,
- ressaltando seu impressionante poder político de mediação de conflitos e construção de alianças.
Aliás, penso que nós brasileiros
- jamais saberemos a real estatura moral de um homem como ele,
- reconhecido como um dos grandes diplomatas do Xingu.
- A maioria de nós jamais saberá que entre nós caminhou um gigante
- que é comparável a alguns dos líderes mais proeminentes da história mundial.
Nos calamos, cansados de resignação, tristeza e raiva.
Aritana Yawalapiti. (Foto: Ademir Rodrigues/Brasil Indígena/Funai/Divulgação)
Pouco antes, um amigo que trabalha com a questão indígena há décadas me mandou mensagens com a voz claramente embargada de indignação e impotência.
- Pedia a minha ajuda para um levantamento de artigos que atestem a ineficácia da Ivermectina
- que, segundo ele, estava sendo distribuída em aldeias junto com a famigerada Cloroquina numa espécie de “kit-anti Covid”.
- Queria distribuir esses artigos para as autoridades que estão envolvidas nessa ação, de modo a deixar claro sua discordância. Como nós, ele também pode fazer pouco contra as ordens desarrazoadas que é obrigado a seguir.
Os observadores da questão indígena, seus aliados e suas organizações
- são unânimes em denunciar o que chamam de genocídio das populações tradicionais
- perpetrado pelo governo Bolsonaro.
O termo é tecnicamente correto, como se sabe, pois diz respeito à ação ou inação potencialmente danosa de um determinado grupo político em desfavor de uma fração étnica, racial ou religiosamente distinguível de sua população majoritária.
* O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendesadvertiu, de forma clara, aos militares brasileiros que “o exército está se associando a um genocídio”.
* Sylvia Steiner, única brasileira a integrar a corte do Tribunal Penal Internacional também vê a possibilidade de agentes políticos, a começar por Bolsonaro, serem julgados pela gestão desastrosa da crise sanitária, em especial em relação aos povos indígenas.
* Até Gonzalo Vecina Neto, ex-Secretário Nacional de Vigilância Sanitária, afirmou que
“estamos promovendo um genocídio com os índios. É um genocídio real. Tem gente se colocando contra o termo genocídio, mas é real. Está acontecendo nas tribos indígenas do Centro-Oeste”.
Em suma, os militares brasileiros sabem que correm o risco de serem condenados internacionalmente por genocídio. Sabem disso e têm medo.
E esse medo não é de hoje.
O incontornável livro do jornalista Rubens Valente intitulado “Os fuzis e as flechas: histórias de sangue e resistência indígena na ditadura”
- narra uma série de episódios de contatos entre povos indígenas e agentes do governo ou de missões religiosas, na década de 1970,
- que resultaram em contágio massivo e dizimação de aldeias inteiras,
- sem nenhuma assistência da FUNAI.
Segundo ele, já em 1972 o etnólogo francês Jean Chiappino
- produzira um relatório para o Grupo de Trabalho Internacional para Assuntos Indígenas (IWGIA, em sua sigla em inglês)
- em que questionava a metodologia de trabalho da instituição indigenista que, a seu ver, era vetor de doenças e mortes.
E se perguntava (p.68), num trecho que poderia muito bem servir para nossos tempos:
- “esse trabalho de proteção é tão desagradável para certas pessoas ou significa uma política deliberada?
- O silêncio em que é mantido não revela que certas pessoas estão bem informadas sobre o que estão promovendo?
- E não temamos uma palavra: isso não é genocídio?”.
As críticas internacionais sobre a capacidade dos governos militares de evitarem o extermínio dos povos indígenas
- se avolumaram de tal forma que
- as autoridades buscaram uma chancela de uma organização internacional – no caso, a Cruz Vermelha –
- que desse um “atestado” de que tudo corria bem com nossos povos tradicionais.
A Comissão Nacional da Verdade – que tanto enfureceu os militares das três armas- estimou que
- durante a ditadura civil-militar morreram pelo menos 8.350 indígenas, dentre os quais
- cerca de 1.180 Tapayuna,
- 118 Parakanã,
- 72 Araweté,
- 14 Arara,
- 176 Panará,
- 2.650 Waimiri-Atroari,
- 3.500 Cinta-Larga,
- 192 Xetá,
- 354 Yanomami
- e 85 Xavantes de Marãiwatsédé.
É um número claramente subestimado, pois é sabido que
- milhares mais morreram à míngua de fome e doenças
- sem terem a dignidade de serem considerados humanos pelos governos da época.
Ainda assim, dá a magnitude do desprezo para com nossos povos tradicionais, algo que, sem exagero, não podemos descartar como impossível de acontecer novamente.
- Ou é, por acaso, surpresa para alguém
- que o governo Bolsonaro é um inimigo declarado dos direitos indígenas consagrados pela constituição de 1988?
Brasil é, disparado o campeão de genocídio de Índios na América Latina – Foto: Daqui
Os militares brasileiros não sofreram punições pelas atrocidades cometidas pela ditadura civil-militar.
Ao contrário,
- patrocinaram uma transição democrática tutelada,
- provavelmente responsável por boa parte das mazelas republicanas que vivenciamos hoje em dia.
- A anistia desceu amarga pela garganta, mas a vida seguiu.
A política normalmente não é bonita, nem justa. Nós aprendemos isso da pior maneira.
No entanto, entendo que,
- quando novamente for possível respirar politicamente no Brasil,
- será necessário pensar no procedimento para a responsabilização penal dos militares
- que estão se “associando ao genocídio” promovido pelo governo Bolsonaro.
Creio que será necessária a instalação de uma nova Comissão Nacional da Verdade,
- desta feita dedicada a apurar as condutas dos agentes públicos com ou sem farda
- durante o período pandêmico no país.
E, desta vez,
- não poderá haver anistia “ampla, geral e irrestrita”,
- sob pena de nunca conseguirmos fixar os militares nas casernas de uma vez por todas.
- As mortes de Aritana, Payakan e tantos outros não podem ficar impunes.
Vai doer. Vai ser duro. Eles vão gritar, espernear, vai haver muito choro e ranger de dentes. Vão resistir. Mas é o que tem de ser feito.
Leonardo Barros Soares
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/601701-por-uma-comissao-da-verdade-do-genocidio-indigena
Leia mais:
- O genocídio dos povos indígenas. A luta contra a invisibilidade, a indiferença e o aniquilamento. Revista IHU On-Line, Nº. 478
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