Sem tu não há eu, e nós somos nós na presença e no encontro com os outros.
Anselmo Borges – 1 de Agosto de 202o – Imagem: Daqui
A identidade só se dá na e pela alteridade. Só há ser humano com outros seres humanos. Ser e ser-em-relação auto-implicam-se. A alteridade não é adjacente, acrescentada, a pessoa só existe no encontro com o outro/outros. Sem tu não há eu, e nós somos nós na presença e no encontro com os outros.
Aí está um tema e um problema sempre presentes, pois
- o que há é sempre nós e os outros, vivendo e convivendo,
- enriquecendo-nos mutuamente ou destruindo-nos uns aos outros.
A pergunta essencial é então: porque é que se passa tão fácil e rapidamente do encontro mutuamente constituinte e enriquecedor à suspeita, à luta e ataque destruidores?
Na relação sadia com o outro/outros, há dois pressupostos essenciais.
- Um diz a dignidade inviolável de toda a pessoa humana, independentemente do sexo, da cor, da etnia, da religião…
- Outro pressuposto é a tomada de consciência de que o outro é sempre outro, igual e diferente.
O outro, sempre cultural, pois o ser humano é resultado
- de uma herança genética e de uma cultura em história,
- porque é, simultaneamente, tanto do ponto de vista pessoal como grupal e societal,
- um outro eu e um eu outro — outros como nós e outros que não nós —,
- é sentido constantemente como fascínio e ameaça.
Há uma visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado como diabolizado, mitificado positivamente ou negativamente.
Atente-se na ligação entre hóspede e hostil. Assim, hospital vem do latim hospite, que significa hóspede, também em conexão com hotel.
Como ser-no-mundo,
- o Homem é, logo na raiz, hóspede: somos hospedados no mundo.
- Mas a palavra está ligada também a hoste, donde provém hostil — também há o hostel.
Não nos pedem à chegada a um hotel a identificação, pois não se sabe quem chega por bem ou por mal? E a fronteira, porta de entrada e de saída — em conexão com fronte:
- a nossa fronte somos nós voltados para os outros,
- mas ao mesmo tempo ela é limite, demarcação —,
- não é ao mesmo tempo o espaço de acolhimento e da independência a defender frente ao invasor?
O mesmo se pode ver na análise da palavra encontro. Também aqui é importante observar como, analisando o étimo, comparece
- não só a relação constituinte com o outro,
- mas também a indicação do embate e contraposição,
- assinalados no contra da palavra encontro,
que aparece igualmente
- no espanhol, encuentro,
- no francês, rencontre,
- no alemão, Begegnung, com o gegen, que significa contra.
Nesta linha, estão também
- o anti positivo e irrenunciável, cujo fundamento são os direitos humanos — a tolerância tem a sua barreira no intolerável: pense-se no anti-racismo e no anti-esclavagismo —,
- e os anti negativos, que têm como base fundamental a ignorância e o medo ou desígnios de poder,
levando à construção social do outro como
- ameaça,bode expiatório, encarnação do mal e o inimigo
- — pense-se, por exemplo, nos judeus, nos muçulmanos, nos protestantes, nos jesuítas, nas mulheres:
- anti-semitismo, anti-islamismo, antiprotestantismo, antijesuitismo, antifeminismo —, a menosprezar, marginalizar, humilhar e até abater e eliminar.
Aí está, pois,
- a tentação constante da redução do diferente ao mesmo,
- porque isso dá segurança.
Mas o mesmo não comunica.
- A identidade só se dá na e pela alteridade.
- Só há ser humano com outros seres humanos.
- Ser e ser-em-relação auto-implicam-se. A alteridade não é adjacente, acrescentada, a pessoa só existe no encontro com o outro/outros. Sem tu não há eu, e nós somos nós na presença e no encontro com os outros.
Internet: Reprodução
As duas atitudes contrapostas frente ao outro estão tipificadas em dois passos da Bíblia.
- No mito de Babel, no livro do Génesis, que representa a arrogância, a dominação e a confusão.
- No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com Babel.
Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade.
- A arrogância imperial de Babel anula a diferença,
- o amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar.
Na relação com o outro, há um terceiro elemento fundamental. A identidade do ser humano não é fixa, mas histórica, processual, a fazer-se. Neste domínio, mesmo se discutível, há um texto célebre do filósofo E. Levinas, que chama a atenção para duas figuras paradigmáticas, na relação com o outro: Ulisses e Abraão.
Ulisses, depois da Guerra de Troia, de volta a casa,
- vive a aventura de encontros múltiplos, experiências variadas,
- travou combates, enfrentou obstáculos sem fim, conheceu o diferente.
- Coberto de vitórias e glória, regressa. Mas chegado a casa, mesmo disfarçado, “diferente” do Ulisses que partira, é ainda o “mesmo”, que até o seu cão, pelo faro, reconhece.
Ulisses representa o herói do regresso, que contactou com o diferente apenas para, num mundo domesticado e assimilado, reduzi-lo ao mesmo.
Abraão ouviu uma voz que o chamava, e partiu da sua terra, para nunca mais voltar.
- A sua viagem vai na direcção do novo, do não familiar, do diferente, do Outro.
- Ninguém o espera num regresso ao ponto de partida.
- Há só uma Palavra de promessa que o chama para um futuro sempre mais adiante.
Abraão ouve, caminha, transcende.
A sua identidade transfigura-se a cada passo, é processual, histórica, em transcendimento. Não rompe com o passado, mas o seu êxodo vai no sentido de um futuro imprevisível e sempre novo.
Na actual situação do mundo globalizado,
- como salvaguardar, no contexto de identidades inevitavelmente compósitas,
- o equilíbrio tensional entre a universalidade e a singularidade,
- sem rupturas nem esquizofrenias, sem rigidez nem fixismo, sem trair as origens nem enregelar nelas?
A cultura da paz supõe e implica a sinfonia das nações, grupos e povos em contraponto, aberta à transcendência, em que Deus é o Outro de todos os outros, garante da dignidade de todos, incluindo as vítimas, e da unidade dos diferentes, a caminho da plenitude.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia em Coimbra
Fonte: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/02-ago-2020/nos-e-os-outros-12485553.html
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