“Essa Instrução, que não fala apenas à Itália, nem apenas à Europa, mas também aos cinco continentes, também deve levar em conta “formas” de comunidades paroquiais muito diferentes entre si”,
escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 22-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Foi publicado um novo texto da Congregação do Clero – Instrução sobre “A conversão pastoral da comunidade paroquial a serviço da missão evangelizadora da Igreja” – que se apresenta rigorosamente dividido em duas partes:
- do parágrafo I ao parágrafo VI, ele apresenta uma “eclesiologia da paróquia” e o desafio da conversão pastoral com uma certa liberdade, recorrendo plenamente aos textos do Concílio e do Papa Francisco.
- Do número VII ao número XI, por outro lado, o texto entra na articulação jurídica da organização territorial das comunidades, mudando tanto o uso das fontes, quanto o fôlego do discurso, como é evidente olhando simplesmente para o aparato das notas.
Na primeira parte, também se leem textos fortes, largamente retirados da profecia deste pontificado:
- liberdade, audácia, saída de si, inquietação, colaboração, novas possibilidades a serem descobertas, a coragem de ousar.
- O tema é decisivo e central no pontificado de Francisco, desde a Evangelii gaudium.
Na segunda parte, no entanto,
- as fontes normativas, assumidas quase como uma autoridade diferente e superior,
- bloqueiam toda possibilidade de movimento,
- diminuem toda pretensão,
- reduzem todo o possível ao existente, senão a detalhes pouco relevantes (as ofertas das missas ou o papel marginal dos leigos com papel de presidência).
Para uma leitura abrangente e analítica do texto, remeto a um belo post de Umberto Rosario Del Giudice, publicado nessa terça-feira, 21 [disponível aqui, em italiano], à queima-roupa, no qual se oferece um quadro abrangente do documento e algumas avaliações gerais muito apropriadas.
Gostaria apenas de me deter
- sobre alguns aspectos problemáticos,que têm um valor exemplar
- e permitem uma visão abrangente do que a Igreja está vivendo nas últimas décadas.
A difícil renovação das Paróquias, onde o padre é o dono e o leigo diz: Amen – Foto: Franciscanos / Daqui
Um “genus abruptum” do magistério?
- Depois da Veritatis gaudium e da “Querida Amazônia” – documentos de outro nível e de elaboração mais complexa –
- este é o terceiro documento no qual se manifesta uma “discrepância interna”,
- que, de fato, paralisa a sua eficácia.
Naqueles casos, tratava-se
- ou de um “proêmio” ao qual se seguia uma normativa dissonante (Veritatis gaudium)
- ou de “conclusões” que entravam em tensão com os “sonhos” de 4/5 do texto anterior (“Querida Amazônia”).
Um único documento pode suportar apenas uma certa margem de incoerência: quando a supera, torna-se não apenas ineficaz, mas também introduz problemas novos, além daqueles que já existem.
É evidente que esse fenômeno tem as suas razões,
- não depende apenas da “má vontade” ou da “incapacidade” de quem redige os documentos.
- É o fruto de uma “competência universal” que deve levar em conta muitíssimos fatores, muito diferentes entre si,
- e que, na “composição sintética”, tendem a entrar em conflito.
Essa Instrução, que não fala apenas à Itália, nem apenas à Europa, mas também aos cinco continentes,
- também deve levar em conta “formas” de comunidades paroquiais
- muito diferentes entre si.
Mas, se o compromisso for exagerado demais,
- será inevitável que, sobre as 20 páginas do texto, fale-se apenas das “poucas verdadeiras novidades”;
- as ofertas para a missa, a presidência totalmente excepcional dos leigos para alguns sacramentos etc.
Uma operatividade sem saídas?
Em uma Instrução, porém, essa “discrepância” é um defeito mais grave, pois o documento não é uma Constituição Apostólica ou uma Exortação Apostólica, mas sim uma Instrução de uma Congregação, portanto, um documento expressamente operacional.
Se ele apresenta, em seu interior,
- uma tensão tão forte entre “reforma estrutural” e “eterno retorno do mesmo”,
- entre uma paróquia que deve “sair de si mesma” e uma paróquia que se “fecha nas suas evidências tridentinas”,
- o problema passa do nível ocasional para o nível estrutural.
Não é mais o problema de alguns, mas se torna uma questão para toda a Igreja.
- E, com essa sua figura contraditória, indica uma questão estrutural
- da qual devemos nos encarregar com toda a clarividência e decisão, com toda a audácia e paciência necessárias.
A difícil relação entre teologia e direito
O problema de fundo, que emerge bem do teor e da articulação dessa Instrução, diz respeito à relação entre
- “proposições teológicas”
- e “disposições normativas”.
A coerência assegurada pelo sistema medieval e, depois, tridentino, em um mundo muito menos complicado do que o nosso,
- tornou-se altamente problemática
- a partir da “reformulação teológica” do Concílio Vaticano II.
No desígnio original de João XXIII,
- a reforma do Código era uma passagem percebida justamente como incontornável.
- Ela chegou 20 anos após o Concílio e recepcionou apenas parcialmente a sua novidade.
Portanto, hoje temos
- uma teologia do ministério, do matrimônio, da Igreja e da missão mais dinâmica,
- e uma normativa muito mais estática, tuciorista, desconfiada, autorreferencial.
Dois grandes estudiosos, inclusive com posições bastante diferenciadas, concordam com este fato:
- uma grande teologia que não sabe se traduzir em normas
- e uma normativa desprovida de fôlego teológico
- estão agora diante de nós, de uma forma plástica.
Como bem evidenciaram em dois livros recentes Severino Dianich (“Teologia e diritto”) e Carlo Fantappié (“Ecclesiologia e canonistica”), a partir das suas análises,
- vem à tona plenamente um vício da era pós-conciliar,
- que vai muito além do documento individual
e diz respeito ao modo
- de “ativar institucionalmente a teologia”
- e de dar um “horizonte teológico ao direito”.
O direito como “mera técnica”, auxiliado pela sua estrutura de Código tendencialmente autossuficiente,
- constitui uma tentação profunda da Igreja pós-conciliar,
- que pode se imunizar contra toda “saída”,
- limitando-se a “aplicar o código”.
Não é por acaso que todas as reformas que o Papa Francisco pôde promover até agora são “reformas de cânones” (como Magnum principium) ou são “preter-jurídicas” (como a releitura do “foro interno” promovida pela Amoris laetitia).
Um limite institucional
O limite é estrutural.
Do modo como está configurada, pelos procedimentos internos de elaboração dos documentos, hoje a Congregação do Clero (junto com todas as outras Congregações) pode elaborar esse tipo de texto:
- poderão eventualmente assumir a linguagem de um Concílio ou de um papa,
- mas as questões de autoridade sempre dependerão da velha lógica da identificação da Igreja com a hierarquia,
- que não se deixa iluminar por outra coisa senão por si mesma:
é um pressuposto do sistema jurídico que “faz teologia” de modo implícito, mas muito eficaz.
- O léxico até poderá ser o das Constituições conciliares ou do Francisco mais profético,
- mas o cânone continuará sendo o tridentino.
Sem uma reforma da Congregação, dos seus procedimentos e das suas estruturas, os frutos serão sempre à imagem dessa árvore.
Considere-se, por exemplo, o fato de que
- a Instrução em questão diz respeito à “conversão pastoral da comunidade paroquial”,
- mas a competência do Dicastério é sobre os “clérigos”.
Ninguém pode negar a relação entre clérigos e paróquia,
- mas a tentação de reduzir a comunidade à sua cabeça
- está, por assim dizer, no próprio organograma que institui a questão.
É um “limite estrutural” da organização do trabalho que não podemos considerar meramente como contingente e que deve ser explicitamente posta como questão.
Reforma da Cúria como “condição de inteligência do real”
Aquela que Rosmini já denunciava em 1832 como uma “praga” – a divisão entre clero e leigos – poderia ser, talvez, o recurso para realizar a conversão pastoral com a balança de um farmacêutico? E até, para facilitar mais o trabalho,
- poderíamos, talvez, reivindicar que se “imponha um léxico vinculante”
- que oculte os problemas que já estão no plano da linguagem?
Vê-se bem a dificuldade de perceber a “mudança de época” nessa recaída “paternalista”, com a qual se arroga o direito de explicar a todos como devem falar, quando fazem experiência de autoridade na Igreja.
- Uma má teologia gera uma normativa distorcida.
- E uma forma institucional se legitima com uma dogmática jurídica de 100 anos de idade.
Esse deslize comunicativo revela a autorreferencialidade do sistema,
- que até pode se permitir falar linguagens mais cheias de frescor e ágeis sobre a comunhão, a corresponsabilidade, a invenção de novos estilos, a audácia da abertura a novas situações,
- mas, assim que decreta sobre a autoridade, não tem mais “sinais dos tempos” para aprender ou “formas de vida” para considerar.
O documento, precisamente com a sua discrepância interna, nos entrega uma tarefa comum a ser assumida com coragem: a reforma dos procedimentos teológicos e das categorias jurídicas.
- A teologia deve saber ser “processual” e não apenas abstrata,
- enquanto o direito deve assumir a profecia como uma tarefa, não como um perigo.
Em tudo isso, devemos fazer como os antigos: permanecer fiéis à tradição, traduzindo-a em formas novas. Assim fizeram os medievais no novo mundo comunitário. O mesmo fizeram os Padres tridentinos no início da era moderna.
Agora, nós devemos fazer isso, nas contingências novas, assustadoras e promissoras do nosso tempo.
A mudança não deve só nos assustar, mas também nos é exigida: Sic transit gloria mundi, sic transit figura Congregationis. (Assim passa a glória do mundo, assim passa se desvanece a figura da Congregação – NdR)
.
Andrea Grillo
Professor de Teologia na Itália, leigo, casado, 2 filhos
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