escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por Raúl Zibechi, LaJornada, 03-07-2020. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Entre os países com a maior quantidade de infectados pela Covid–19, há quatro latino-americanos: Brasil (segundo), Peru (sétimo), Chile (oitavo) e México (décimo). O Chile tem o triste recorde de contagiados por habitante (15.000 por milhão), seguido pelo Peru (8.500), bem acima dos Estados Unidos, Espanha e Itália.
O México é uma das nações do mundo com o menor número de testes por habitante, sendo o mais atrasado da região com a maior população. O Chile faz 15 vezes mais testes por habitante e a Bolívia 20 vezes mais.
Na semana que terminou com o 28 de junho, os quatro primeiros países do mundo em mortes por milhão de habitantes são latino-americanos:
- Chile com 48,
- México com 31,
- Peru com 28
- e Brasil com 26.
Na Bolívia e na Colômbia, a taxa de pessoas infectadas cresce de forma permanente.
Na medida em que se conhecem novos dados, a indignação cresce.
- Em São Paulo, a diferença na porcentagem de mortes por Covid–19 entre os bairros ricos e pobres é alarmante.
- Em Bela Vista, na região central, morrem 20 pessoas para cada 100.000 habitantes.
- No Brás, um bairro pobre do centro, falecem 87 para cada 100.000 habitantes.
Encontro três razões básicas para compreender porque que a América Latina é hoje o centro global da pandemia, uma situação que está longe de diminuir.
A primeira é a desigualdade,
que carrega consigo, como companheiros de viagem, a corrupção, o desmantelamento dos serviços de saúde e a pobreza estrutural de metade da população.
- Enquanto a OMS recomenda oito camas de hospital para cada mil habitantes (no Brasil são 2,2),
- em alguns municípios da Baixada Fluminense (estado do Rio de Janeiro), como Seropédica e Itaguaí, existem apenas 0,3 a 0,8 camas para cada mil habitantes.
No Peru, 70% da população trabalha no setor informal. Alguns mercados, como o ‘La Victoria’, em Lima, apresentavam, em maio, 86% de infectados.
No Chile, onde as pessoas de cima violam a quarentena como e quando querem, incluindo o presidente,
- nos bairros de renda superior, tais como Las Condes e Providencia, 90% dos lares têm acesso à Internet.
- Em Cerro Navia, La Pintana e Lo Espejo não alcança nem 30%, afetando as possibilidades do ensino à distância.
Um excelente artigo em El Desconcierto, intitulado No conocen su país, destaca que
- 75% da renda dos chilenos é destinada para o pagamento de dívidas
- e que 82% dos maiores de 18 anos é devedor inadimplente.
- Dois milhões de pessoas têm sérios problemas de acesso à água potável
- e em muitas casas convivem quatro gerações sob o mesmo teto.
O segundo problema é a violência,
- que desestruturou as nossas sociedades
- e transformou os estados-nação em espectadores cúmplices do neoliberalismo.
O monopólio da violência legítima, que se atribui aos estados, é uma piada macabra, quando já não há qualquer diferença entre máfias e estados.
Cada massacre
- é testemunho da cumplicidade dos corpos armados,
- como acaba de acontecer em San Mateo del Mar [México]
- e em cada um dos massacres que ocorrem, toda semana, contra populações nativas e negras de nosso continente.
Embora alguns se façam de distraídos, sabemos que a violência faz parte da acumulação por expropriação/quarta guerra mundial, que é a marca de identidade do capitalismo neste período de turbulência e tempestades. Dito de outro modo: a violência é sistêmica, para acumular riquezas e para conter os povos. Não é um desvio do sistema, é o seu núcleo duro, o que lhe permite existir.
A terceira causa deriva das anteriores:
governos erráticos, incapazes
- não só de conter a pandemia – algo que poderia ser compreendido, dadas as tremendas condições estruturais que herdaram -,
- mas também de aceitar seus fracassos, com um mínimo de humildade.
Há governantes que movem a agulha do pico da pandemia quando as contas não se encaixam. Não só no México.
A pandemia mostra
- tanto a crise de governabilidade,
- como as consequências de três décadas de neoliberalismo sobre as instituições e contra os povos.
Os governos não governam, apenas acompanham servilmente os projetos do capital e do império de Trump.
Como esta pandemia será seguida por outras, algumas já anunciadas (como uma peste suína em desenvolvimento) e outras inevitáveis (como as ambientais pressagiadas pelos incêndios florestais, as pragas de gafanhotos e a sucessão de secas e inundações), é tempo de refletir e tomar precauções.
Quem defenderá os povos
- quando os governos decretarem o confinamento massivo,
- enquanto o extrativismo (mineração, monoculturas e grandes obras)
- continua destruindo e assassinando?
Ou nos organizamos ou estaremos condenados a ser folhas na tempestade sistêmica.
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