Frei Bento Domingues, O.P. – 28/06/20 – Imagem: Daqui
O apelo ao diálogo inter-religioso é fundamental, mas no pressuposto de se tratar, verdadeiramente, de religião.
1. Jean Druel é um dominicano francês, especialista da patrística copta, da língua árabe, da gramática árabe medieval e director do conceituado IDEO – Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo (Egipto), onde vive. Com esta apresentação, podia dar a ideia de uma pessoa confinada na investigação científica, a escrever só para especialistas. Mas não.
Tornou-se um conferencista muito escutado e passou a escrever livros breves, de vários géneros,
- para mostrar que a vida diária, carnal, intelectual, sexual, afectiva, social, cultural, desportiva, literária, musical
- é o verdadeiro e concreto espaço de Deus connosco.
- É no Seu insondável mistério que vivemos, nos movemos e existimos.
Foto: Daqui
Nessa nova biblioteca, publicou uma deliciosa introdução aos princípios do diálogo inter-religioso, fruto da sua longa experiência de diálogo com o mundo muçulmano. Recomendo-o vivamente.
- A escuta paciente das raízes das diferenças
- é a boa regra para viver no seio dos conflitos que habitam todos os aspectos da vida, a começar pela vida familiar [1].
Para este investigador, um dos aspectos do drama da nossa época resultou da ingenuidade de se ter acreditado que,
- fazendo calar as religiões e os crentes,
- se ia conseguir viver num mundo de paz.
Pensou–se também que o estudo histórico dos dogmas e das práticas religiosas neutralizaria o potencial de violência que se abriga nas religiões. Aconteceu precisamente o contrário.
Precisamos, como nunca,
- de dialogar,
- de nos sentirmos confrontados com as nossas próprias crenças e narrativas.
- De escutar os nossos próprios mundos interiores provocados no confronto com os outros. Também eles habitados por mundos que talvez desconheçam.
O objectivo do diálogo
- não é o de procurar estar de acordo,
- mas de tentar descobrir as raízes das diferenças.
Vamos, assim, tornando-nos adultos na fé, livres e felizes de sermos diferentes.
Se forem respeitadas algumas regras simples, como
- a de tomar a sério o interlocutor,
- de o escutar até ao fim, sem se enervar,
- de dizer verdadeiramente o que se pensa,
podem ser ultrapassados os medos recíprocos e viver melhor uns com os outros, sem estar de acordo.
Se este livro ajudar os leitores a encontrar esse caminho, o autor pensa que ganhou a sua aposta.
2. O apelo ao diálogo inter-religioso é fundamental,
- mas no pressuposto de se tratar, verdadeiramente, de religião
- e quando os interlocutores consentem nesse caminho.
Perante uma situação de violência activa,
- a própria realidade afirma, muitas vezes, a falta de margem para se entrar em diálogo.
- A linguagem é a das armas.
- Terão de ser encontrados outros caminhos.
Por outro lado, a persistente acusação das religiões, como fontes de violência, precisa de ser mais ponderada.
- É uma acusação que não se refere apenas a guerras antigas e às Cruzadas medievais.
- No século XVI, no início da Modernidade, os conflitos entre católicos e protestantes estão na origem de uma nova visão do direito público europeu.
- Os Estados nacionais, em plena expansão, usaram o pretexto religioso para alcançar ambições muito pouco religiosas.
- Durante muito tempo, os Estados soberanos europeus desenvolveram uma política destinada a estabelecer, de facto, uma Igreja nacional sujeita à sua autoridade.
Foto: Daqui
Mas aqui é preciso distinguir:
- a invocação da religião, em determinadas situações, é um poderoso factor de mobilização identitária,
- mas quem pode negar que muitos conflitos apresentados como religiosos, tanto no passado como no presente, têm na realidade motivações e ambições inteiramente terrenas?
A acusação da religião como factor de violência redobrou-se com
- o ataque de 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque,
- em Madrid, em Londres, em Paris, em Nice,
- sem falar da série de atentados e massacres na Síria, no Paquistão, na Nigéria, no Sri Lanka, no Iraque, no Iémen, na Líbia, etc.
O terrorismo macabro do DEDI (Dito Estado Dito Islâmico), no nordeste de Moçambique, vem agora documentado no importante livro de Nuno Rogeiro, O Cabo do Medo [2].
- Perante os desafios da fome, da injustiça, da guerra e da paz do nosso tempo, os católicos e os muçulmanos só podem dizer que não sabem o que fazer em conjunto, se continuarem a ser cegos.
A 04 de Fevereiro de 2019, o Papa Francisco e o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, assinaram, em Abu Dhabi, a Declaração Fraternidade Humana em prol da paz e da convivência comum.
Que esta Declaração tenha sido possível constitui o acontecimento mais significativo, de que há memória,
- entre o representante mais reconhecido da comunhão da Igreja católica
- e a figura amplamente considerada como a autoridade máxima no mundo muçulmano sunita.
Distinguem, rigorosamente, o que pode e deve ser atribuído à religião e o que é o seu uso perverso:
“De igual modo declaramos — firmemente — que
- as religiões nunca incitam à guerra
- e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue.
Estas calamidades são fruto
- de desvio dos ensinamentos religiosos,
- do uso político das religiões
- e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram — nalgumas fases da história — da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens
- para os levar à realização daquilo que não tem nada a ver com a verdade da religião, para alcançar fins políticos e económicos mundanos e míopes.
Por isso, pedimos a todos que
- cessem de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego
- e deixem de usar o nome de Deus para justificar actos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão.
Pedimo-lo pela nossa fé comum em Deus, que não criou os homens
- para ser assassinados ou lutar uns com os outros,
- nem para ser torturados ou humilhados na sua vida e na sua existência.
Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas”.
O documento é longo e abrange as questões centrais do mundo dos nossos dias. Precisa de ser conhecido e estudado:
“Al-Azhar e a Igreja Católica pedem que
- este Documento se torne objecto de pesquisa e reflexão em todas as escolas, nas universidades e nos institutos de educação e formação,
- a fim de contribuir para criar novas gerações que levem o bem e a paz e defendam, por todo o lado, o direito dos oprimidos e dos marginalizados”.
Já é tempo de perguntar: o que está a ser feito, entre nós, desta recomendação, tanto no campo católico como muçulmano?
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Notas;
[1] Je crois en Dieu! — Moi non plus, Cerf, 2017.
[2] Cf. Nuno Rogeiro, O Cabo do Medo. O Daesh em Moçambique. 2019-2020, D. Quixote, 2020.
Frei Bento Domingues
Fonte: https://www.publico.pt/2020/06/28/opiniao/opiniao/responsabilidade-etica-religioes-1922085
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