Anselmo Borges – Jornal Público, – 13.05.2020
Fátima, que reúne centenas de milhares de peregrinos em 12 e 13 de maio, pela primeira vez em 103 anos, ficou vazia em 2020, devido ao Covid 19 – Foto: Daqui
Fátima. Nossa Senhora apareceu realmente em Fátima? Penso que a resposta é simples:
Nossa Senhora não apareceu (fisicamente) em Fátima. Aliás, o Papa Francisco, quando esteve em Fátima a celebrar o primeiro centenário, não falou em aparições.
- Se fossem “aparições”, todos os presentes veriam e ouviriam. Como, num encontro, se chegar outra pessoa, todos a vêem — isso é uma “aparição”.
- Só os pastorinhos viram, e cada um à sua maneira.
- Tratou-se de visões, experiências interiores, e não de aparições.
E não me custa admitir que as três crianças tenham feito uma autêntica experiência religiosa, pois também as crianças podem fazer a experiência do Mistério.
Não consta que tenham sido pagas para dizerem que viram Nossa Senhora, até sofreram bastante e, no começo, a própria Igreja pôs reticências. Evidentemente, foi uma experiência religiosa à maneira de crianças e no seu contexto histórico:
- ouviam falar da Guerra,
- havia a perseguição da Igreja,
- com o tempo houve arranjos e rearranjos — porque é que surge a condenação do comunismo, mas não a do nazismo? —,
- e os pregadores das famosas “missões populares” derramavam dos púlpitos para baixo sermões aterradores.
Desse modo, a experiência dos pastorinhos chegou
- como dom de alegria e paz,
- mas também com dimensões de verdadeiro terror: que mãe mostraria aos seus filhos pequenos aquelas imagens terríficas do fogo do inferno?
De qualquer modo, Fátima não é dogma de fé e pode-se ser um bom católico e não acreditar em Fátima.
Mais:
- Fátima não é nem pode ser o centro do cristianismo,
- esse centro é Jesus Cristo e a fé nele,
- que revelou, por palavras e obras, que Deus é Amor incondicional, Pai-Mãe, que ama a todos e nem na morte nos abandona.
Fátima precisa, portanto, de ser evangelizada.
- É preciso compreender o sofrimento das pessoas e manifestar-lhes solidariedade activa na sua dor.
- Mas é igualmente necessário, na fidelidade ao Evangelho da graça, evitar o perigo das promessas, no quadro de uma religião de compra e venda.
Deus não precisa que as pessoas se arrastem pelo chão nem de sacrifícios.
- Por vezes, traduz-se por “fazei penitência”,
- mas o Evangelho diz que Jesus começou a sua pregação assim: mudai de vida!
O verbo grego utilizado, metanoeîte, significa: “convertei-vos”, “mudai de mentalidade”, de modo de pensar, de vida.
- Fátima tem inclusivamente afirmações heréticas,
- como quando se diz que Maria “detém o braço do seu Filho pronto a descarregar a sua ira sobre a Humanidade”.
- Ela apareceria então contra Deus, melhor do que Jesus e o Deus do Evangelho, que é Amor.
Uma das razões destes equívocos está no patriarcalismo da Igreja e na omnipresença do masculino.
- Deus é masculino, e é Pai, Filho e Espírito Santo,
- papa, bispos, padres são do sexo masculino,
- a socialização religiosa de uma menina é no masculino: é baptizada por um padre e as mulheres confessam-se a um padre.
Depois, tradicionalmente, o pai na família representava a lei, a ordem, o temor, e quase não podia manifestar afecto e ternura.
Neste contexto,
- a figura de Deus como Pai e dentro das pregações tradicionais do medo na relação com Deus Pai,
- Maria aparece como a Mãe, a mãe terna e acolhedora, que recebe os filhos aflitos nos seus braços, aquela que entende, escuta e consola.
O milagre de Fátima são os milhões de pessoas que lá vão ter com a Mãe. Desabafam, convertem-se e mudam de vida.
- O ser humano, dada a neotenia (nascemos prematuros), ao contrário dos outros animais, nasce por fazer.
- Um ovo abre-se e o pintainho, logo no primeiro dia, faz o que vai fazer ao longo da vida;
- uma vitelinha nasce, a mãe lambe-a, ergue-se naquele andaime periclitante, e já anda.
- O ser humano, não.
Quanto tempo demora a fazer um ser humano? Precisa de imensos cuidados, de aprender tudo. Tem de receber por cultura e produzindo cultura o que a natureza lhe não deu.
- Das duas uma: ou a natureza foi madrasta para ele
- ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos: seres humanos.
Vindos ao mundo por fazer, a nossa missão é, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós próprios, uns com os outros.
O que é que andamos no mundo a fazer?
- Fazendo o que fazemos, andamos a fazer-nos a nós mesmos
- e, dado que somos livres, é bom que nos façamos bem,
- para que no fim resulte uma obra de arte.
Neste quadro, o ser humano é sempre alguém a caminho, como sublinharam os filósofos, por exemplo, M. Heidegger, nunca feito, a fazer-se. A peregrinação adquire aqui todo o seu sentido. O homem é, por natureza, peregrinante. A peregrinação quer dizer viagem, difícil, ao estrangeiro, a um lugar sagrado.
No caminhar da vida, o crente sabe que não vai só, é acompanhado por Deus e lá, no lugar santo, tem a alegria de pré-saborear o destino da sua vida, que é a plenitude da vida com a Humanidade inteira em Deus. Por isso, da peregrinação, regressa com outro ânimo para as tarefas, fáceis ou duras, do quotidiano da vida, com outro horizonte.
- Pela sua constituição, o ser humano é no espaço e no tempo. E o espaço não é homogéneo e o tempo também não. Há o espaço vulgar e o espaço sagrado, o tempo vulgar e o tempo outro, um tempo qualitativo, sagrado. E Maio (13 de Maio) é um tempo novo e outro, os peregrinos põem-se a caminho de Fátima (lugar “visitado” e abençoado pela Mãe), para um encontro vivificante com ela — e neste ano da pandemia havia tanto para contar e desabafar e chorar e suplicar…
Mas não é possível.
- A dor é sem fim e sem conta, mas Maria compreende e quer que se fique em casa, onde também é possível encontrá-la, o encontro físico em Fátima ficará para mais tarde.
- O mais importante é a peregrinação interior, ir ao mais íntimo e encontrar Deus.
Talvez com o intuito de esbater o escândalo intolerável das celebrações do 1.º de Maio, a Ministra da Saúde ainda falou da possibilidade da presença de fiéis nas celebrações em Fátima. Mas o bispo António Marto manteve a medida que se impunha: as celebrações serão sem fiéis, que podem acompanhá-las em casa pela televisão.
Anselmo Borges.
Padre e professor universitário
Fonte: https://www.publico.pt/2020/05/13/opiniao/opiniao/fatima-covid19-1916211
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