Um texto polêmico, para discutir entre teólogos, liturgistas e pastoralistas
Eucaristia “a portas fechadas” para evitar o contágio: ressonâncias, em voz baixa, sobre uma escolha de emergência que talvez revele o que realmente pensamos sobre a liturgia e sobre a Igreja celebrante.
Terminado o período de isolamento, será preciso voltar a falar sobre isso.
A opinião é da teóloga italiana Simona Segoloni Ruta, leiga da Diocese de Perugia-Città della Pieve, casada e mãe de quatro filhos. É professora de Teologia Sistemática, Teologia Trinitária, Eclesiologia e Mariologia no Instituto Teológico de Assis.
Obteve seu doutorado na Faculdade Teológica da Itália Central, com um estudo sobre a recepção do Concílio Vaticano II na teologia italiana. Faz parte da Coordenação das Teólogas Italianas e da Associação Teológica Italiana, sendo membro de seu conselho diretivo.
O artigo foi publicado em Il Regno, 19-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Pela primeira vez, a Igreja deve enfrentar uma pandemia gerida com critérios científicos, que aconselham isolar as pessoas. A situação é difícil, às vezes inquietante, e merece todo o nosso respeito e a nossa atenção, começando pela proximidade (como for possível) a quem sofre e está mais sozinho. Não foi nada fácil decidir o que fazer em nível eclesial.
A decisão de suspender todas as atividades e a celebração eucarística, para seguir as indicações dos especialistas que recomendam o isolamento para frear o contágio e salvar a vida de muitos, foi tão fatigante quanto meritória.
Por outro lado, a modalidade como foi realizada merece alguma reflexão, porque nos ajuda a lançar luz sobre o que pensamos sobre a celebração eucarística e a própria Igreja.
Comecemos com a observação de que, na realidade, as celebrações não foram suspensas, mas, no máximo, continuam “a portas fechadas” ou “sem povo”.
Essa escolha se baseia na ideia de que a Igreja não pode deixar de celebrar, mas, de fato,
- declara com extrema facilidade que, para celebrar, não é necessário reunir o povo, se isso não for possível por problemas graves.
- Os ministros se reúnem entre si (ou com alguns fiéis, para evitar, meritoriamente, celebrar sozinhos),
- e os institutos religiosos masculinos fecham as portas, realizando uma celebração privada.
Ninguém faria isso se não fosse forçado, concordo,
- mas o ponto é que pensamos que, embora em uma situação de emergência, isso pode ser feito.
- E é exatamente isso que deveria nos fazer refletir:
- talvez, em uma situação de emergência, revelamos aquilo que realmente somos, e é justo tentar ver isso.
Antes do pão e do vinho, a assembleia
Deveríamos saber muito bem que, quando celebramos a eucaristia, acima de tudo, reunimos o povo.
- Constitui-se uma assembleia, não predeterminada ou selecionada, mas convocada pelo Espírito:
- esta é a primeira matéria para poder, depois, celebrar.
É preciso o povo convocado, antes que o pão e o vinho, e sem aquele não há eucaristia.
- O ministro que, de vez em quando, preside uma assembleia
- torna possível, com seu próprio ministério (imposição das mãos e oração), o gesto que a assembleia deve fazer (“tomai e comei”) para ser um só corpo (o corpo de Cristo tornado presente precisamente pelo “ser um” daqueles que comem o único pão).
Não é preciso dizer que, se essa é a eucaristia, não é possível que ela seja celebrada se não é possível reunir o povo.
O que fazemos, então, neste momento, quando celebramos “sem povo”?
Provavelmente, voltamos a beber do modelo tridentino, segundo o qual
- o ministro (com ou sem o povo é secundário, assim como o público para os jogos de futebol) oferece o sacrifício a Deus por todos.
- Não estamos mais diante do ato do povo (este é o significado da palavra “liturgia”),
- mas de um rito unicamente do presbítero,
- ao qual outros fiéis presentes ou (sic!) via web podem se associar.
A práxis que escolhemos nesta emergência coloca seriamente em discussão a reforma litúrgica do último Concílio e, com ela, o modelo de Igreja que a sustenta.
A mensagem que se passa é que
- são os ministros que podem pensar em tudo aquilo que é necessário;
- o povo deve seguir, como os torcedores em relação ao próprio time
- ou como os “seguidores” em relação aos seus autores de tuítes.
Eu sei que as intenções não são essas, mas as de sustentar a todos com a oração. Por outro lado, a
- oração pode ser feita independentemente do gesto eucarístico (achamos realmente que a oração de quem fica sem celebração vale menos do que a de quem consegue celebrar?)
- que, por sua vez, tem uma natureza específica própria,
- para a qual é essencial reunir o povo para que possa ser tornado um só corpo pelo dom que Cristo faz de si mesmo.
Retorno à “societas inequalis”
Se declaramos o povo como acessório para a liturgia, voltamos à societas inequalis centrada na prática sacramental:
- nada de sacerdócio batismal,
- nada de sinodalidade,
- nada de centralidade da evangelização.
E, de fato, preocupamo-nos (com as devidas exceções) em transmitir missas em streaming, em não ensinar a rezar em família nem em intensificar a pregação com os canais (aqui sim as tecnologias digitais são uma ajuda) adequados para um processo comunicativo como o que a pregação realiza e que – neste caso, pode-se admitir, porque o ato não é desnaturalizado por causa disto – pode abrir mão da presença física em uma situação de emergência.
As escolhas feitas, em vez disso, que preveem celebrações “sem povo” não apenas contradizem o ato litúrgico eucarístico, mas também dividem a própria comunidade eclesial:
- temos ministros de um lado, que encontram grupos de religiosos/as ou alguns leigos escolhidos com quem celebram,
- e todos os outros são mantidos do lado de fora.
De algum modo, repete-se – embora não sendo esta a intenção de ninguém –
- aquilo que Paulo denunciava na Primeira Carta aos Coríntios (11,17-34) acerca das celebrações
- que, em vez de realizar o gesto de Cristo (comer juntos o único pão para ser um só corpo), realizavam divisões (um toma a sua própria refeição, e o outro passa fome).
Ocorre o mesmo hoje:
- alguns celebram, e outros não,
- e desse modo tornamos a celebração não o lugar do único corpo, mas sim da divisão.
Talvez seria melhor que todos jejuassem
Talvez se todos jejuarem – mas, repito, a situação é totalmente nova e muito difícil, de modo que encontrar o caminho é realmente inacessível –
- se realizaria de modo mais pleno o gesto de Jesus que deu a si mesmo para que os seus fossem um só corpo
- e, assim, vivessem no meio dos outros dando a si mesmos como ele, como uma memória perpétua e viva do seu gesto.
Em países de outros continentes, muitas vezes o povo precisa renunciar a celebrar porque não tem quem possa presidir e, portanto, tornar possível o gesto de todos. Nós talvez poderíamos renunciar a celebrar porque não podemos reunir o povo que é o protagonista do gesto eucarístico.
Isso não aconteceu porque,
- talvez, ainda não amadurecemos tal consciência
- e pensamos que, no fundo, o presbítero é o protagonista da celebração eucarística,
- portanto, não se pode abrir mão dele (veja-se precisamente os países que forçados a celebrar raramente por falta de ministros), mas do povo, sim.
Não são apenas muitos ministros que pensam isso, mas também uma grande parte do povo
- que prefere saber que alguém “diz missa” à qual é possível se unir “espiritualmente”,
- em vez de saber que ele é tão indispensável a ponto de não poder haver celebração sem a possibilidade de reunir o próprio povo.
Agora não é o momento, devemos olhar para a emergência em curso e fazer o bem ao nosso alcance. Mas, depois de passada a tempestade, será preciso debater sobre o que vivemos e escolhemos, para fazer gestos coerentes com o significado que eles têm e para crescer na unidade, que sozinha pode tornar o Ressuscitado presente.
Simona Segoloni Ruta
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