Anselmo Borges – 16/02/20 – Foto: TVI24
Se algum dia se avançasse por esta via da legalização da eutanásia, o Estado ficaria com mais uma obrigação: satisfazer o direito ao pedido da eutanásia e seria confrontado com esta pergunta terrível: quem mata?
Porque é disso que se trata, não se venha com o eufemismo enganoso, porque manhoso e mentiroso, de “morte medicamente assistida”, pois assistência médica, psicológica, familiar, afectiva, pastoral, religiosa (se for o caso) todos querem.
Não é por acaso que este texto tem por título “a morte medicamente assistida e a eutanásia”.
- É que, em primeiro lugar, nestes debates de vida e de morte,
- é preciso ser claro e não induzir em erro as pessoas de forma manhosa:
- morte medicamente assistida é uma coisa, eutanásia é outra…
O grande filósofo Hegel lembrou a urgência de conceitos claros, pois “de noite todos os gatos são pardos”
- e, no meio da confusão, ninguém se entende, e, nessas circunstâncias,
- em problemas que têm a ver com o limite,
- o mais provável é cair no abismo.
Evidentemente,
- a posição da Igreja na questão da eutanásia só pode ser, mesmo no caso de um referendo — a Conferência Episcopal Portuguesa acaba, tarde, de se manifestar favorável, nas presentes circunstâncias, ao referendo —,
- a de uma oposição contundente e propugnando a defesa dos cuidados paliativos
- e a presença plena, humana e cristã, junto de quem se encontra em dificuldades, na solidão, na dor, no sofrimento e a caminho do fim.
Aliás, essa presença solidária tem de ser durante a vida toda, para vivermos dignamente, sabendo que
- da vida digna faz parte a morte digna:
- viver dignamente e morrer dignamente.
Mas previno que
- o que está em questão não é, em primeiro lugar, a religião,
- mas valores fundamentais, constitutivos, da civilização,
- de tal modo que a aprovação da eutanásia significaria um retrocesso e mesmo uma ruptura civilizacional.
Embora compreenda os argumentos a seu favor — há vários textos meus nos quais explico esses argumentos —,
- quero que fique bem claro que eu me oponho à eutanásia
- e a que o debate sobre o seu pedido volte à Assembleia da República.
Porque é que os principais partidos não debateram abertamente a questão durante a recente campanha eleitoral nem a colocaram nos programas?
Não estou só a pensar nos perigos da rampa deslizante: lembro que,
- nos pouquíssimos países onde o pedido de eutanásia é legal,
- esta rampa ou plano inclinado existe de facto,
- com alargamento quantitativo e qualitativo de pedidos aceites
- e autênticos casos de abuso (homicídio) reconhecidos — por exemplo, está em curso na Bélgica uma acusação contra um pediatra por nove “eutanásias disfarçadas”.
E qualquer pessoa fica preocupada com a notícia que chega da Holanda “da pílula sem dia seguinte”, como, no seu modo sempre arguto, atirou o eurodeputado Paulo Rangel:
- “Todas as pessoas que fazem 70 anos receberão como prenda de aniversário um comprimido com o qual podem suicidar-se.
- E depois quem é que controla o destino destes comprimidos?
- Às tantas, vamos ter gente a matar outra gente” (Público, 9 de Fevereiro).
Porventura as pessoas com 70 anos valem menos do que quem tem 50 ou 30? Confesso: isto, a ser verdade, significa o colapso de uma sociedade.
Ainda no contexto da rampa deslizante, é preciso não ser ingénuo.
- Numa sociedade economicista, de individualismo e egoísmo atrozes,
- ergue-se o perigo gravíssimo de pessoas serem “empurradas” a pedir a eutanásia
- e, pior, muitos interiorizarem inclusivamente a obrigação de a pedir.
Isso não obriga a pensar?
Há uma razão que diria metafísica para a oposição à pena de morte, a mesma para se opor à eutanásia.
Penso, por exemplo, em L. Wittgenstein, para quem o mundo é o conjunto dos factos, verificáveis.
- Mas, para lá do verificável,
- há “o místico” (das Mystische), que “se mostra”, o metafísico, o absoluto.
Não como o mundo é, mas que o mundo seja é o místico, escreveu Wittgenstein.
- Deus também não é deste mundo,
- nem a ética, que é da ordem do dever ser e não dos factos.
O morrer é deste mundo, mas a morte não é deste mundo.
- A morte, digo eu, é uma das faces do absoluto,
- a outra é Deus,
- e, por isso, não é deste mundo.
Ora,
- a pena de morte é a condenação à morte eterna para este mundo,
- fechando a abertura à continuidade do processo de possibilidades,
- incluindo a do arrependimento e emenda, de retomar a existência na sua dignidade.
Nenhuma instância terrena poderá, pois, fazer o juízo final, definitivo, de uma pessoa.
- E é preciso contar sempre com o perigo do erro no julgamento.
- Aí está por que não se pode ser a favor da pena de morte nem a favor da eutanásia.
Aliás,
- quando alguém pede a morte por eutanásia, está a pedir o quê?
- Que grau de liberdade tem?
- E se, entretanto, se arrepender e quiser recuar?…
Ai, os mistérios da existência humana e da liberdade! A dignidade da pessoa humana, inviolável, convive com a vulnerabilidade e, por isso, do que precisamos é de uma ética da fragilidade e do cuidado.
Mais.
Se algum dia se avançasse por esta via da legalização da eutanásia, o Estado ficaria com mais uma obrigação: satisfazer o direito ao pedido da eutanásia e seria confrontado com esta pergunta terrível: quem mata?
- Porque é disso que se trata,
- não se venha com o eufemismo enganoso, porque manhoso e mentiroso,
- de “morte medicamente assistida”,
- pois assistência médica, psicológica, familiar, afectiva, pastoral, religiosa (se for o caso) todos querem.
No que o Estado deve pensar é na urgência dos cuidados paliativos, que ainda não chegam à maioria dos doentes;
- num relatório recente (Cf. jornal i, 16 de Janeiro), lê-se que
- de 102 mil doentes que preencheriam os requisitos para beneficiar de cuidados paliativos em 2018,
- apenas um quarto teve acesso a este tipo de resposta que visa aliviar o sofrimento físico e psicológico em casos de doença incurável avançada e progressiva.
As lacunas são ainda maiores nas crianças:
- em oito mil menores com doenças incuráveis,
- só 90 tiveram acesso a este tipo de cuidados, 0.01%.
Concluiu-se que faltam
- 430 médicos,
- 2114 enfermeiros
- e 173 assistentes sociais nesta área.
Conclusão: perante a sobrecarga, o tempo dedicado aos doentes é pouco:
- os médicos têm em média 44,5 minutos por semana com cada doente (nove minutos por dia).
- O mesmo se diga dos enfermeiros e assistentes sociais.
É uma vergonha para uma sociedade
- querer debater e despenalizar a eutanásia,
- quando ainda não tem uma rede de meios paliativos minimamente suficiente.
Os doentes, em casos extremos,
- precisamente porque o Estado lhes não garante apoios suficientes para a sua existência minimamente digna,
- são colocados perante o insuportável,
de tal modo que se ergue de modo dramático a pergunta:
- nessas circunstâncias, onde está a sua liberdade para pedir a eutanásia?
- Afinal, pedem a morte ou apoio e alívio na dor, para continuar a viver dignamente e morrer dignamente?
Aí está a razão por que, no contexto da precipitação para que a eutanásia volte ao Parlamento, logo após a aprovação do OE para 2020, observam alguns e não necessariamente cínicos: a eutanásia poderia ajudar bastante certos Orçamentos de Estado, a Segurança Social!…
Evidentemente,
- opor-se à eutanásia não é ser a favor da distanásia e da obstinação terapêutica, que podem ser imorais.
- Deve-se aliviar a dor, mesmo que isso apresse a morte. Uma coisa é matar e outra deixar morrer em tempo oportuno e com dignidade, sem prolongar a vida artificialmente e de forma desproporcionada.
O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, disse-o de modo perfeito. Cito uma entrevista sua a Marta Reis no jornal SOL, 11 de Janeiro.
Em primeiro lugar, esclarecer:
“O que temos de fazer, e esse é o aspecto mais importante, é dar o máximo de informação para o debate.
- Não é infrequente estar em reuniões com deputados,
- pessoas que se vão pronunciar, e confundem ainda eutanásia, a morte a pedido num caso de doença grave,
- com distanásia, que é prolongar a vida de uma pessoa indevidamente, prolongar a vida de alguém numa fase terminal em que o que se deve oferecer é o máximo de conforto.”
E a autonomia do doente?
Continuou Miguel Guimarães:
- “O doente tem autonomia para dizer que não quer fazer tratamentos. Um doente com cancro pode recusar um tratamento.
- Mas no caso da eutanásia, falamos de uma participação activa na morte, o código deontológico proíbe”.
Mesmo a nível internacional,
- “encara-se sempre a eutanásia como um acto médico.
- Não é. Não faz parte de nenhum compêndio que matar uma pessoa seja um acto médico,
- é a antítese do acto médico.
Quando se diz que dar a uma pessoa um medicamento para matar tem de ser feito por um médico não percebo a justificação”.
Chamo a atenção para o facto de, por exemplo,
- a França, que está a rever leis de bioética,
- ter excluído do debate a eutanásia
- e, no limite, ser favorável à sedação profunda e continuada.
Já quase em post-scriptum, quero dizer que aceitei figurar entre os 101 mandatários, como o antigo Presidente da República, Ramalho Eanes, ou o médico e antigo bastonário, Germano de Sousa, de uma petição a favor de um referendo sobre a matéria.
É que,
- no meio da confusão que indiquei no início e quando até deputados, como ficou dito, não sabem distinguir entre eutanásia, distanásia, ortotanásia, suicídio medicamente assistido…,
- impõe-se um debate amplo, nacional,
para que todos os portugueses sejam ouvidos e possam ficar minimamente esclarecidos sobre o que está em causa.
Anselmo Borges
Padre e Professor aposentado de Ética na Universidade de Coimbra
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