A recusa a considerar a sinodalidade como parte essencial da resposta da Igreja à crise dos abusos é uma falta de imaginação eclesial, afirma Massimo Faggioli
Massimo Faggioli – 10/12/2019 – (Foto: UPDATE IMAGES PRESS / MAXPPP)
Tradução: Orlando Almeida
– Se você piscou, provavelmente perdeu isso. Mas este último domingo foi o 150 º aniversário da abertura do Concílio Vaticano Primeiro.
Foi em 8 de dezembro de 1869 que o papa Pio IX convocou o concílio que ficaria conhecido pelas suas declarações sobre a primazia e infalibilidade papal .
Ele seria o símbolo de um catolicismo assertivo que rejeitava a modernidade liberal.
O missiologista católico Robert Schreiter observou que o Vaticano I pavimentou o caminho para um “período de certeza” dentro da Igreja.
De um período de certeza, a uma incerteza paralisante
Mas a crise dos abusos sexuais
- virou de cabeça para baixo essa avaliação
- e destruiu todas essas alusões à suposta certeza.
- Os católicos agora estão questionando muitas hipóteses sobre o seu passado, incluindo o significado e os efeitos do Vaticano I (1869-70) e do Vaticano II (1962-65).
Como pode a doutrina católica, incluido o seu ensino conciliar, coexistir com o que aprendemos sobre a crise dos abusos sexuais – um fenômeno que obviamente não começou apenas na década de 1960?
- Em vez de um período de certeza, a Igreja atualmente está passando por um período de paralisante incerteza,
- algo muito diferente da incerteza libertadora que marcou os primeiros anos após o Concílio Vaticano II.
Os efeitos continuados da crise dos abusos sexuais estão realmente condicionando a recepção e /ou rejeição da Igreja aos elementos-chave do Vaticano II.
A crise pode tornar-se uma linha de demarcação – um antes e um depois – na história da recepção e aplicação deste concílio mais recente.
Devemos procurar entender a relação entre a crise dos abusos sexuais e o Vaticano II – como tais abusos e o seu padrão de encobrimento puderam continuar durante a implementação e recepção do concílio.
O fato preocupante é que o fracasso do período pós-Vaticano II em enfrentar esses crimes horríveis não é novidade.
Se olharmos retrospetivamente para o concílio de Trento (1545-1563), podemos ver que
- havia também uma desconexão entre o seu ensinamento sobre a reforma
- e o modo como ele era aplicado à vida real da Igreja.
Lições da Igreja Tridentina
Estudos sobre o período tridentino constatam que
- era extremamente raro que padres e religiosos acusados de atos criminosos (especialmente de crimes sexuais)
- enfrentassem a justiça, seja nos tribunais eclesiásticos seja nos da justiça do Estado.
Os historiadores falam de uma “justiça negociada”, na qual muitos fatores e atores diferentes intervieram para dar proteção aos clérigos.
No período posterior ao concílio de Trento
- a ascensão da diplomacia papal teve um papel importante
- na proteção de clérigos criminosos.
- Os núncios papais e os delegados nas missões diplomáticas defendiam frequentemente os ordenados da ação dos tribunais do Estado,
- bem como dos esforços dos bispos locais para entregar à justiça membros do seu clero.
Típica desse período era uma fragmentação entre os diferentes sistemas judiciais:
- a justiça do Estado, que tinha interesse em processar esses crimes,
- e o sistema judicial separado a que o clero católico tinha direito (o chamado privilegium fori).
Mas havia também fragmentação dentro da Igreja:
- a autoridade dos bispos locais;
- a autoridade das ordens religiosas (não sujeitas à jurisdição dos bispos);
- e a autoridade de Roma, que tinha interesse em manter boas relações com os bispos, com os religiosos e com os Estados.
A preocupação primordial do papado era manter o poder do Estado à distância e evitar toda a possível interferência secular nos assuntos da Igreja.
Esta história pós-Trento pode nos ajudar a entender melhor como a Igreja de hoje enfrentou a crise dos abusos sexuais – não apenas em termos de fragmentação de jurisdições, mas também na maneira como a crise é comunicada ao público, inclusive aos próprios membros da Igreja.
Nos séculos XVI e XVII, tal como nos nossos dias,
- havia uma grande preocupação em não divulgar as razões pelas quais um membro do clero “renunciava” ao seu cargo.
- Tal sigilo é, de fato, parte da tradição e da estratégia jurídica da Igreja ao lidar com crimes do clero, especialmente os de natureza sexual.
Dentro desta tradição, o clero recebia tratamento especial quando eles chegavam a ser sentenciados. Alternativas à prisão (e à tortura) estavam amplamente disponíveis para os condenados que eram membros do clero. A justiça tendia a ser altamente simbólica e não tão severa como a aplicada aos leigos que cometiam os mesmos crimes.
Há também outras semelhanças entre o período Tridentino e o atual. Mesmo os mais inflexíveis executores da ortodoxia, como Pio V (papa de 1566 a 1572),
- não estavam dispostos a abrir mão dos privilégios do clero
- quando se tratava de proteger os clérigos da justiça secular.
Além disso, nos séculos posteriores a Trento, era considerado mais importante lutar contra a heterodoxia do que contra o clero criminoso. De maneira semelhante, alguns católicos contemporâneos continuam a ver a crise dos abusos como o resultado da convulsão social e cultural das décadas de 1960 e 1970.
Uma história que serve de advertência
O fracasso da Igreja Tridentina dos séculos XVI e XVII na luta contra o clero criminoso, incluindo os culpados de crimes sexuais, também foi devido a uma disputa intra-católica
- pela supremacia entre o papado e os seus diplomatas,
- os bispos,
- as ordens religiosas
- e as elites leigas católicas.
No século XVIII a inabilidade da Igreja para lidar com o seu clero criminoso levou a autoridades seculares a intervirem de forma mais agressiva nos seus assuntos.
Esta é uma história que vale como advertência.
- Assim como as falhas de Trento levaram ao agressivo “jurisdicionalismo” dos Estados seculares três séculos atrás ,
- a inabilidade atual da Igreja em implementar a eclesiologia do Povo de Deus proposta pelo Vaticano II
- levará provavelmente a uma nova onda de intervenção do Estado nos assuntos eclesiásticos.
O que vimos até agora é apenas o início. Para o Estado-nação moderno,
- a segurança de crianças e das pessoas vulneráveis em instituições religiosas
- supera de longe qualquer tradicional deferência para com o poder da Igreja.
- Tornou-se uma questão de saúde e de segurança pública.
A lista de recomendações da Comissão Real à Igreja Católica na Austrália é um ótimo exemplo disso.
Um sistema eclesiástico que ainda não reflete o Vaticano II
Em termos institucionais, a Igreja Católica de hoje
- continua a assemelhar-se mais ao sistema eclesiástico tridentino e pós-tridentino,
- do que ao sistema previsto pelo Vaticano II.
Houve, no entanto, mudanças importantes. Uma é histórica e diz respeito às relações Igreja-Estado.
- Antes, a instauração de um processo por crimes do clero
- era percebida por ambos os lados como uma questão menor
- em comparação com disputa pelo poder entre eles.
Outra mudança é que,
- no passado, os crimes sexuais do clero
- raramente provocavam protestos das comunidades locais e dos fiéis leigos.
Quando havia protestos, era porque o padre não estava dando ao povo acesso ao sagrado.
Havia uma nítida separação entre as expectativas dos fiéis sobre
- como o sacerdote desempenhava as suas funções sagradas
- e como o clérigo conduzia a sua vida privada.
Agora, vivemos numa época em que os fiéis católicos, e o mundo inteiro, esperam que os líderes da Igreja sejam testemunhas e não simplesmente pregadores do Evangelho. A linha de separação entre privado e público foi praticamente eliminada.
Em busca de uma eclesiologia do Povo de Deus
Mas a maior mudança, de Trento para hoje, diz respeito à eclesiologia.
- Os católicos têm uma ideia teológica acerca da Igreja que não é mais dominada por elites e hierarquias.
- Pelo contrário, ela situa-se na comunhão com o Povo de Deus.
- Esta é uma mudança eclesiológica que poderia desempenhar um papel fundamental na luta contra o abuso sexual e contra o abuso de poder na Igreja.
A história nos diz que seria um erro colocar a culpa pela crise do abuso exclusivamente no sacerdócio.
A impunidade do clero
- era o fruto ruim de uma ideia ainda pior –
- a de que o clero estava acima da lei secular.
- Mas era também porque as duas hierarquias – uma clerical e a outra secular –
- conspiravam juntas na corrupção (política, social e econômica).
Sinodalidade: essencial para superar a crise dos abusos
É por isso que a ênfase do Papa Francisco na sinodalidade é tão importante. Da Cúria Romana ao sistema diocesano e paroquial,
- a estrutura institucional da Igreja no atual período pós-conciliar ainda é bastante Tridentina.
- Mas a eclesiologia católica do Vaticano II não é.
A sinodalidade é essencial para superar a crise dos abusos– como Francisco disse num discurso marcante em outubro de 2015 – referindo-se ao mal que
“submete o destino de povos inteiros ao controle de grupos pequenos mas poderosos”.
Esse discurso papal sobre sinodalidade assinalou um momento chave na história da recepção do Vaticano II. E deve marcar também um ponto de passagem de como a Igreja deve enfrentar a crise dos abusos.Os melhores exemplos disso no Catolicismo global de hoje vêm de igrejas que iniciaram um processo sinodal local ou nacional.
- De maneiras diferentes e com nomes diferentes,
- todas incluíram a articulação de políticas específicas para lidar com a tragédia do abuso sexual.
A alternativa é ficar esperando passivamente, com vergonha e repulsa, enquanto as cadeias de notícias trombeteiam as atividades sórdidas deste ou daquele prelado e publicam o último relatório devastador de um grande júri ou de um procurador-geral.
Na falta de um caminho eclesial apropriado para reagir ao escândalo,
- a nova consciência que surgiu sobre a crise de abuso sexual
- está destinada a causar mais perda de confiança na Igreja como comunhão.
- Por último, levará a um abandono maciço da fé.
A recusa em considerar a sinodalidade como uma peça-chave da resposta da Igreja à crise dos abusos é uma falta de imaginação eclesial. É também uma traição ao povo de Deus.
Massimo Faggioli
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