A reportagem é de Lúcia Müzell, publicada por Radio France Internacional – RFI, 21-10-2019.
A gota d’água foi o aumento de 3,75% do valor das passagens de metrô nos horários de pico, justamente o mais utilizado pelos trabalhadores.
“Foi apenas um estopim de vários conflitos e tensões que perpassam o modelo econômico chileno desde a ditadura, em 1973. Um modelo neoliberal que traz consequências sociais muito complicadas de serem administradas”,
afirma Fábio Borges, professor de Relações Internacionais da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana).
“É simbólico porque
- o Chile, por muito tempo,
- foi considerado um exemplo na condução econômica,
- com maior estabilidade e crescimento.
Mas o que essas manifestações demonstram é que
- essas contradições estavam presentes,
- porém, provavelmente por causa do trauma da ditadura, isso não vinha a público”, diz.
Números invejáveis – mas população no aperto
- Com as contas em dia,
- o desemprego e a inflação sob controle,
- o país é visto como modelo por governos conservadores como o do presidente Jair Bolsonaro.
Olhados isoladamente, os índices macroeconômicos de fato são de fazer inveja:
- o país cresce acima da média latino-americana, a 2,5%,
- o índice de desemprego é estável, em torno de 7% – graças a um mercado de trabalho flexível –,
- e a dívida pública não ultrapassa os 25% do PIB.
Desde a ditadura, os sucessivos governos chilenos seguem os preceitos da ortodoxa Escola de Chicago, que formou economistas como o brasileiro Paulo Guedes. Não à toa,
- o modelo chileno de aposentadorias,
- privatizado e por capitalização,
- inspirou a proposta do governo de reforma das pensões no Brasil.
Entretanto,
- a geração de aposentados pós-reforma no Chile agora não consegue fechar as contas do mês –
- os benefícios chegam a ser de apenas 60% do salário mínimo,
- ressalta Jorge Muñoz, especialista em sociologia do trabalho e estudos comparativos entre Europa e América Latina, da Universidade de Brest, na França.
“Nestes últimos anos, estão se aposentando os primeiros chilenos que pararam de trabalhar desde a adoção deste sistema. Essa situação gera, em parte, os protestos atuais, porque os aposentados estão se dando conta de que o que foi prometido em termos de recursos não foi alcançado”, indica o professor chileno.
“Muitas pessoas estão vivendo com uma aposentadoria muito baixa. O Estado deveria intervir, para tentar compensar o que o sistema privado não está oferecendo.”
Pagar para tudo
O que se verifica nas aposentadorias se repete em serviços públicos básicos, como educação e saúde. A privatização retirou profissionais do setor público, que também é debilitado pela falta de recursos. Para ter acesso a boas escolas e hospitais, é preciso pagar caro no Chile.
“Desde que o Chile ingressou na OCDE, teve de entrar nos padrões comparativos da organização e ficou evidente que é um dos países mais desiguais, incluído na comparação com outros da América Latina. Os salários são muito baixos, por exemplo”, frisa Muñoz.
“Mais de 50% dos chilenos ganham menos de 400 mil pesos por mês, cerca de R$ 2.800.
- Parece bom, mas se consideramos o custo de vida no Chile, que é altíssimo, sobretudo na capital,
- torna-se uma situação muito difícil de administrar para a maioria dos chilenos, na vida cotidiana.”
Resultado:
- o endividamento das famílias atinge índices preocupantes,
- com um terço dos adultos sem conseguir chegar no fim do mês sem contar com a ajuda de um crédito.
“Como toda a lógica econômica girou em torno das privatizações, muitas pessoas recorrem a empréstimos para terem acesso a uma educação de qualidade, ou resolver um problema de saúde emergencial”, pontua Borges.
“O setor financeiro é muito dinâmico, mas em detrimento a uma estabilidade de renda das pessoas, que ficam vulneráveis em troca de ter uma condição mínima de vida.”
O professor da Unila avalia que
- a tensão social atual coloca em cheque o modelo ultraliberal adotado pelo país,
- sem que os problemas estruturais de base não tenham sido solucionados previamente.
- Essa situação, sublinha, se repete em outros países latino-americanos.
“Na América Latina, as políticas neoliberais agravam o problema”, destaca Borges.
“Na Europa, já houve uma etapa de construção do Estado de bem-estar social: em algum momento, eles
- atacaram os problemas de desigualdades,
- viabilizaram os direitos trabalhistas, à saúde e a infraestruturas.
Na América Latina, nós nunca passamos dessa primeira etapa.”

Lúcia Müzell
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