O obséquio não foi casual. Uma relíquia distinta de São Francisco Xavier se conserva em Macau, na costa da China, onde a congregação vaticana “de propaganda” abriu em 29 de julho um dos seminários “Redemptoris Mater” para a formação de padres que pertencem ao Caminho, que já são mais de cem disseminados por todo o mundo.
Na quarta-feira, 18-09, ao finalizar a audiência geral na praça São Pedro, o papa inclusive saudou os formadores e os alunos desse novo seminário, antes de sua partida para Macau. E, segundo um comunicado do Caminho, disse a Kiko:
“Estou contente porque realizais a coisa mais importante da Igreja, que é evangelizar, e não o fazeis com proselitismo, mas sim mediante o testemunho”.
- A sorte de ambos chegou ao zênite durante o pontificado de João Paulo II,
- deslumbrado pela intransigência destes no âmbito do amor conjugal,
- com seu não absoluto aos contraceptivos
- e com famílias super-prolíficas.
Porém, primeiro com Bento XVI e, depois, com Francisco, as censuras ao Caminho se multiplicaram. E hoje, ao final deste mês de setembro, sai um livro que inclusive o acusa de apoiar verdadeiras heresias: O padre autor do livro é, também, diretor de um blog muito atento à ortodoxia doutrinal. E focaliza os dois erros capitais do Caminho
- em uma “concepção herética do sagrado mistério eucarístico” – com a missa que se assemelha “em parte a uma páscoa judaica e em parte a um banquete calvinista” –
- e em uma “confusão sobre as distintas formas de sacerdócio”,
- a comum a todos os batizados
- e a específica de quem recebeu as ordens sagradas,
- com catequistas leigos, começando por Kiko, que se colocam a si próprios os deveres dos padres e mandam em tudo.
De fato, ainda sem chegar a processos por heresia,
- a doutrina e a práxis do Caminho levantaram nas décadas passadas severas críticas por parte das autoridades vaticanas,
- tanto da Congregação pela Doutrina da Fé, que já quando Joseph Ratzinger era prefeito
- examinou e obrigou a corrigir quinze volumes de transcrições das catequeses orais
- ensinadas por Kiko e a co-fundadora María del Carmen Hernández Barrera (1930-2016) aos adeptos do movimento,
- como da Congregação pelo Culto Divino, que em diversas ocasiões chamaram as comunidades neocatecumenais ao fiel cumprimento do rito romano na celebração da missa.
A esses chamados, os vértices do Caminho se declararam sempre obediente da Palavra, porém desobecendo de fato, isso é, continuando, porta adentro, com a celebração das suas extravagantes missas e suas peculiares catequeses, ao mesmo tempo que, em público,
- se exibiam enchendo as praças dos “Family Day”,
- viajando em massa nas cidades sedes das Jornadas Mundiais da Juventude,
- enviando famílias em missão a terras longínquas,
- ademais de multiplicar seus seminários Redemptoris Mater.
Tudo isso lhes garantiu alguns êxitos, porém suscitou por vezes duras reações, especialmente por parte dos bispos conservadores, mas também de progressistas – com o cardeal Carlo María Martini (1927-2012) que nunca os quis em sua diocese de Milão -, que não toleram que os neocatecumentais penetrem em dioceses e paróquias semeando divisão e ganhando adepto, não da Igreja, mas da sua própria seita.
Em 2010, uma conferência episcopal completa, a do Japão, chegou a expulsá-los de seu país e fechou seu seminário. E continuou atrapalhando seu caminho inclusive depois de que – em agosto de 2018 – voltaram a aparecer com o apoio do cardeal Fernando Filoni, prefeito de “Propaganda Fide” e fervoroso partidário dos neocatemunais, que anunciou que queria reabrir na diocese de Tóquio um seminário Redemptoris Mater, desta vez sob a jurisdição direta da sua congregação vaticana.
Uma vez fracassado esse segundo assalto ao Extremo Oriente, Kiko e Filoni tentam de novo hoje com a construção do seminário de Macau.
No entanto, sofrem outro revés no Oceano Pacífico.
Ali
- o arcebispo de Guam, Anthony Apuron, partidário do Caminho Neocatecumenal,
- recebeu um forte golpe no último 7 de fevereiro,
- por uma condenação canônica definitiva por abusos sexuais
depois de uma investigação exaustiva realizada em primeira instância pelo cardeal Raymond L. Burke e em segunda instância pelo papa Francisco. Não surpreende que Kiko tenha defendido a inocência de Apuron até o final, porém com a destituição do bispo em Guam, também foi fechado o seminário Redemptoris Mater e a presença dos neocatecumenais quase desapareceu.
Com a chegada de Bergoglio ao pontificado, Kiko pensou que teria o campo mais livre que com seu predecessor Bento XVI, dada a indiferença do atual Papa para os desvios doutrinais e litúrgicos do Caminho.
Porém
- Francisco é alérgico também a supostos méritos adquiridos pelos neocatecumenais
- com sua inflexível condenação dos contraceptivos.
- Tão alérgico como para reservar-lhes, na opinião de muitos, a mordaz piada no avião de volta das Filipinas:
- “Alguns creem que para ser bons católicos devemos ser como coelhos. Não. Paternidade responsável”.
- não convidou a nenhum membro do Caminho para o Sínodo sobre a Família,
- nem sequer como auditor,
- apesar da ostentosa especialização no assunto da que eles mesmo alardeiam.
E a encíclica ecológica Laudato Si’, com os malthusianos Ban Ki-Moon e Jeffrey Sachs cada vez mais habituais no Vaticano e agora também convidados pelo Papa ao iminente Sínodo sobre a Amazônia, deixou de lado os ultras prolíficos neocatecumenais.
Outra coisa que Francisco não gosta é da confusão entre “foro interno” e “foro externo”.
“É o pecado em que caem muitos grupos religiosos hoje em dia”,
disse no último 5 de setembro em Moçambique, quando se reuniu com os jesuítas presentes no país.
No entanto, é precisamente isso o que fazem os neocatecumenais com seus chamados “escrutínios”, que são de fato
“confissões públicas que desencarnam a consciência com perguntas que nenhum confessor se atreveria de fazer”,
como as definiu um arcebispo muito crítico do Caminho, Luigi Bommarito, de Catania.
Ademais, o humilde Bergoglio definitivamente
- não gosta dos enormes gastos que realiza o Caminho para galardear os bispos de todo o mundo,
- por exemplo, presenteando centenas de viagens promocionais a Israel,
- que culminam com uma visita à espetacular cidadela neocatecumenal Domus Galilaeae,
- com magníficas vistas para o lago de Tiberíades.
A isso também pode ser que
- aludiu o Papa quando, em 5 de maio de 2018, na esplanada de Tor Vergata,
- disse aos neocatecumenais que celebravam o 50º aniversário do Caminho:
- “Jesus não autoriza deslocamentos com descontos ou viagens pagas. A todos seus discípulos somente lhes disse: Ide!”.
Porém, sobretudo,
- existe a aversão de Francisco pelos movimentos católicos de qualquer tipo,
- por esses movimentos populares da segunda metade do século XX que despertavam tanto entusiasmo em João Paulo II,
- porém que hoje, independentemente do favor ou desfavor dos papas, estão em decadência em todas partes.
O Caminho Neocatecumenal é um desses. Se somente pudesse transmitir seu “credo” aos filhos de seus prolíficos casais, e depois aos filhos de seus filhos, seu crescimento numérico seria exponencial. Porém não é assim. Já nem sequer funcionar na família.
Sandro Magister
Leia mais:
- Neocatecumenais: a Igreja pouco católica que desafia Francisco. Artigo de Marco Marzano
- Com as missões, a Igreja não estagna, diz Papa aos Neocatecumenais
- As grandes ausências do Sínodo, as famílias neocatecumenais
- ”Placet” ou ”non placet” à liturgia neocatecumenal? A aposta de Carmen e Kiko
- Aos neocatecumenais, o diploma. Mas não o que eles esperavam
- Bento XVI e a sua relação com movimentos como os Neocatecumenais e os Arautos