EcoDebate – 28 Setembro 2019 – Foto: Daqui
Eis o artigo.
“A revolução não é um convite para um jantar” – Mao Tse-Tung
No dia 01 de outubro de 1949, depois de uma longa marcha e do acúmulo de uma série de vitórias parciais, o líder do Exército de Libertação Popular e do Partido Comunista Chinês (PCC), Mao Tse-tung, proclamou, em Pequim, na Praça Tiananmen, a República Popular da China.
Em seguida, Chiang Kai-shek, do kuomintang (Partido Nacionalista Chinês) se refugiou em Taiwan e proclamava a República da China.

Os 70 anos da Revolução Comunista na China, grosso modo, podem ser divididos em duas partes:
- um fracasso nos primeiros 30 anos
- e um sucesso nos 40 anos seguintes.
Entre 1949 e 1979 a China viveu um período de grande turbulência, com muita fome, já que o povo chinês não foi “convidado para um jantar”.
Nas três primeiras décadas o gigante asiático
- se isolou do mundo,
- regrediu em termos econômicos
- e viveu três momentos cruciais: o “Grande salto para a frente”, a “Revolução Cultural” e a “Camarilha dos quatro”.
O “Grande salto para a frente”
- foi uma política lançada por Mao Tsé-Tung entre 1958 e 1960,
- que visava transformar a China Comunista em uma nação desenvolvida e socialmente igualitária em “um salto” (curto tempo), acelerando a industrialização urbana.
Porém,
- o processo de industrialização fracassou,
- consumiu muitos recursos da área rural
- e provocou uma grande fome e uma das maiores mortalidades da história.
As mortes ocorridas neste período são estimadas entre 20 e 50 milhões de óbitos, um número tão grande que provocou uma redução da esperança de vida da população mundial. Segundo a Penn World Table, a renda per capita da China, em poder de paridade de compra, era de US$ 883 em 1953 e caiu para US$ 834 em 1962.
A “Revolução Cultural”
- ocorreu principalmente na década de 1960 (mas se prolongou até a morte de Mao)
- e foi uma reação aos críticos da linha adotada pelo comitê do Partido Comunista e aos críticos do “Grande salto para a frente”.
- Para se manter no controle do Partido e do Estado, Mao Tse-tung incentivou o culto à personalidade e a difusão do “Livro Vermelho”, com citações de Mao.
Os alvos da Revolução Cultural foram
- os membros do partido que mostravam alguma simpatia com o Ocidente ou com a União Soviética,
- a burocracia estatal,
- os intelectuais
- e todo o conhecimento consolidado
- e as políticas públicas na área de educação, saúde, etc.
O sectarismo manteve a China pobre e isolada.
Xi Jinping – Foto: DAQUI
Depois da morte de Mao Tsé-Tung, em 9 de setembro de 1976,
a chamada “Camarilha dos Quatro”, composta por Jiang Qing (esposa de Mao Tse-tung), Zhang Chunqiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan,
- tentaram dar continuidade à Revolução Cultural e ao isolamento do país,
- mas foram derrotados, abrindo espaço para a ascensão das forças reformistas.
Ainda segundo a Penn World Table, a renda per capita da China ficou praticamente estagnada entre 1966 e 1976, passando de US$ 1119 para US$ 1210. Nos primeiros 30 anos da Revolução, a renda per capita chinesa era uma das mais baixas do mundo.
Entre 1976 e 1978 o poder na China mudou de mãos e de orientação.
O novo líder, Deng Xiaoping (1904-1997), assumiu as rédeas do PCC e introduziu uma série de reformas, que ficaram conhecidas como a “segunda revolução”,
- provocando uma completa transformação do país,
- que abandonou o coletivismo comunista
- e assumiu uma feição mista, conhecida como “Socialismo de mercado” ou “Capitalismo de Estado”.
A partir de 1978 a China
- dá realmente um grande salto para a frente
- e se torna a primeira economia mundial (medida em poder de paridade de compra),
- transformando o experimento dos últimos 40 anos
- em o maior e mais rápido exemplo de sucesso da história econômica mundial.
Em 2016, a renda per capita chinesa ultrapassou a renda per capita brasileira.
O gráfico abaixo, com dados do FMI, mostra como
- a China saiu de uma situação de irrelevância econômica,
- cresceu e deslocou os EUA da posição de maior economia do mundo.
Em 1980, o PIB dos EUA representava 21,6% do PIB mundial, enquanto o PIB da China representava apenas 2,3% (os EUA tinham uma economia quase 10 vezes maior). O PIB do Brasil representava 4,4% da economia global (o PIB do Brasil era quase 2 vezes maior do que o da China).
Mas o quadro mudou totalmente nos últimos 40 anos. Em 2014,
- a economia chinesa superou a economia americana e em 2020,
- o FMI estima que o PIB da China representará 19,7% do PIB mundial e o PIB dos EUA apenas 14,8%.
- Nunca na história um país galgou crescimento tão rápido e expressivo.

A renda per capita da China (em poder de paridade de compra, a preços constantes), em 1980, segundo dados do FMI,
- era de US$ 722
- contra US$ 790,00 do Burundi,
- US$ 11,4 mil do Brasil
- e US$ 29,1 mil dos EUA.
A renda per capita da população brasileira era 16 vezes maior do que a da população Chinesa e a americana era 40 vezes maior.
Mas em 2020,
- a renda per capita chinesa (com US$ 18 mil) atinge um nível maior do que a renda per capita brasileira (US$ 14,8 mil),
- sendo que a dos EUA está em US$ 57,2 mil.
- Portanto, o chinês médio já ganha mais do que o brasileiro, embora tenha, atualmente, uma renda 3 vezes menor do que a do americano médio.
Em termos demográficos, a população da China era de pouco mais de meio bilhão de pessoas em 1950 e deve atingir o pico de 1,44 bilhão de habitantes em 2029. A partir de 2030 haverá decrescimento populacional e a China deve chegar em 2100 com uma população de pouco mais de 1 bilhão de pessoas. A população em idade ativa que estava em 1 bilhão de potenciais trabalhadores em 2015 já está em declínio e deve se reduzir para a metade até o final do século.

Quem dita o ritmo de crescimento e de redução populacional é a taxa total de fecundidade (TFT). O gráfico abaixo mostra que a TFT estava em 6 filhos por mulher na época da Revolução Comunista e caiu na década de 1950. Porém,
- com a alta mortalidade ocorrida na época do “Grande salto para a frente”
- e com o caos econômico, social e político ocorrido durante a “Revolução Cultural”
- a TFT voltou a subir e ficou em 6,5 filhos por mulher no quinquênio 1965-70.
Todavia, o alto crescimento demográfico dificultava a luta para a redução da pobreza e, no início dos anos de 1970, ainda na época de Mao Tse-tung,
- foi lançada a política “Mais Tarde, Mais Tempo e em Menor Número” (em chinês: “Wan, Xi, Shao” e em inglês: “later, longer, fewer”)
- que incentivava as mulheres a terem o primeiro filho em idades mais avançadas,
- que mantivessem um espaçamento maior entre os filhos
- e que limitasse o tamanho da prole, adotando um tamanho pequeno de família.
A política “Wan, Xi, Shao” foi um sucesso e a taxa de fecundidade caiu de mais de 6 filhos para menos de 3 filhos em 1980. Tudo indicava que a fecundidade continuaria caindo. Porém, um governo autoritário não costuma respeitar as livres escolhas e os direitos sexuais e reprodutivos.
- No bojo das reformas implementadas por Deng Xiaoping em dezembro de 1978,
- foi instituída a “Política de filho único”,
- a iniciativa controlista mais draconiana da história da humanidade.
Em consequência, mesmo com a maior parte da população vivendo no meio rural, a fecundidade continuou caindo e a TFT ficou abaixo do nível de reposição no quinquênio 1990-95 (com 1,9 filho por mulher) e se manteve ao redor de 1,6 filho por mulher entre 2000 e 2015. Ou seja, depois de cerca de 35 anos de “Política de filho único” a TFT chinesa permanece baixa e o número de nascimentos anuais caiu de pouco mais de 30 milhões no quinquênio 1965-70 para cerca de 17 milhões de bebês na atual década (2011-20).

Para o demógrafo Baochang Gu,
- embora tenha havido exceções, especialmente na zona rural e entre minorias étnicas,
- a regulamentação rigorosa do filho único foi mantida até novembro de 2013,
- quando se permitiu que um casal tivesse um segundo filho, no caso de algum dos cônjuges fosse filho único.
- Em outubro de 2015, foi permitido a todos os casais terem o segundo filho.
- Em 2018 foram eliminadas as restrições ao número de filhos desejados.
Contudo, a baixa taxa de fecundidade veio para ficar, pois a flexibilização não implicou em um surto de nascimentos. Em 2016, imediatamente depois que se permitiu o segundo filho, nasceram 17,9 milhões de crianças, de acordo com a Agência Nacional de Estatísticas. Apenas 1,3 milhão a mais do que em 2015 e metade do que o Governo previa. Já em 2017, o número de nascimentos foi ainda menor, 17,2 milhões de novos bebês, muito abaixo dos 20 milhões estimados pelas autoridades. Em 2018, o número de nascimentos voltou a cair.
O fato é que a China adotou o modelo de
- baixo crescimento demográfico
- e alto crescimento econômico,
- possibilitando o aumento da renda per capita
- e a retirada de cerca de 1 bilhão de pessoas da extrema pobreza.
O crescimento foi tão espetacular que muita gente se refere aos últimos 40 anos como o “milagre chinês”.
Evidentemente, nem tudo são flores.
- O custo ambiental do sucesso chinês foi dramático.
- A China é o maior poluidor do Planeta
- e campeão absoluto da emissão de gases de efeito estufa.
- A Pegada Ecológica chinesa é muito mais elevada do que a Biocapacidade e o país tem um alto déficit ambiental.
Problemas como o da febre suína (um vírus altamente contagioso, sem cura conhecida, e com uma taxa de sobrevivência quase nula para os porcos infectados) aconteceu na África e se espalhou na China, que é a maior produtora e consumidora de carne suína do mundo.
O país é responsável por mais da metade da população global de porcos. O Departamento Nacional de Estatística do país diz que a população de porcos caiu em quase 40 milhões, para 375,3 milhões, em relação ao ano anterior, devido ao surto de febre suína. Mas a epidemia pode dizimar cerca de 200 milhões de porcos.
Isso teria um impacto negativo sobre a economia chinesa, uma vez que os preços da carne suína contribuem de forma importante para seus níveis de inflação e os preços da carne suína na China poderão subir mais de 70% no segundo semestre deste ano.
Isto poderá ser a centelha de muitas manifestações populares e, certamente, vai atrapalhar a festa dos 70 anos da Revolução Chinesa.
Em termos políticos
- a China é uma ditadura de partido único,
- com controle da mídia e com grande controle da Internet e das redes sociais.
Em 1959, houve a intervenção no Tibete, que restringiu a autonomia local e provocou o exílio do líder espiritual Dalai Lama, há 60 anos.
Em 1989, o governo de Pequim reprimiu violentamente as manifestações populares na Praça Tiananmen.
Na China
- não há liberdade religiosa
- e diversas religiões sofrem com a repressão do Estado.
Os povos Uigures, de Xinjiang,
- uma minoria muçulmana que fala um idioma próximo do turco,
- têm denunciado que um milhão de pessoas estavam sendo tratadas como “inimigos do estado”,
- sendo vítimas de “aprisionamento em massa” em “centros de contra extremismo”.
Agora em 2019, o PCC ameaça reprimir as manifestações populares em Hong Kong.
- Quatro meses de espetaculares manifestações na ilha estão atrapalhando os preparativos para a festa dos 70 anos da Revolução.
- Cerca de 20% da população de Hong Kong (mais de 1,5 milhão de pessoas) foram para as ruas no dia 18 de agosto,
- pedindo democracia
- e mostrando que não será fácil esmagar as manifestações democráticas.
A situação se agrava especialmente para os honcongueses que não querem ser plenamente chineses. A despeito da riqueza de Hong Kong,
- tudo está cada vez mais caro na cidade,
- a desigualdade social aumenta e os jovens sofrem com a falta de mobilidade social ascendente.
- Acima de tudo, a população de Hong Kong não aceita o modelo autoritário da República Popular da China.
A linha dura de Xi Jinping em relação a Hong Kong
- acende o alerta para o caso de Taiwan
- e reduz ainda mais a chance de uma unificação pacífica das duas Chinas.
A China continental parece abandonar seus esforços para conquistar corações e mentes em Taiwan e incrementou constantemente suas capacidades militares, gerando medo que possam ser usadas. Isto provocaria uma guerra com os EUA, jogando as duas potências na Armadilha de Tucídides.
Cabe ressaltar,
- que apesar de todo o progresso econômico – embora com restrição da liberdade individual e ameaça de um conflito internacional –
- a China ainda é um país de renda média e pode apresentar dificuldade para dar o salto para um país de renda alta.
O envelhecimento populacional e o fim do bônus demográfico vão dificultar a continuidade do crescimento econômico nas próximas décadas, enquanto cresce no mundo as resistências contra as políticas mercantilistas do país. O cenário é de dificuldades internas e externas.
Contudo, o governo de Xi Jinping deseja comemorar os 100 anos do PCC em 2021 e tem um plano para fazer da China o país mais avançado do mundo até 2049, quando do aniversário de 100 anos da Revolução Comunista (ver figura abaixo). O plano tem parte de uma realidade que o país já é a fábrica do mundo e a campeã da produção de bens manufaturados.
Com a política “Made in China 2025”
- o país pretende alcançar a produção de bens mais sofisticados e de maior valor agregado,
- se igualando na liderança da ciência e da tecnologia.
Até 2035, a China pretende se destacar entre as grandes economias mundiais.
Em 2049, o “Império do Meio”
- pretende liderar o mundo no conjunto das manufaturas
- e no que há de mais avançado na ciência e tecnologia.

Todavia, o caminho para a hegemonia global não será fácil, pois haverá pressões externas e internas.
- A guerra comercial e cambial entre os EUA e a China é só uma parte do problema que ocorre com a ascensão da China no cenário do poder mundial.
- Internamente, existem muitas manifestações contra o autoritarismo e o centralismo do PCC.
- O desacoplamento da “Chimerica” vai trazer dificuldades.
O desequilíbrio na razão de sexo
- deixou milhões de homens sem parceiras na idade de casar
- e o envelhecimento populacional será muito rápido e intenso,
- aumentando a razão de dependência demográfica.
Enfim, os 70 anos da Revolução Chinesa foram marcados
- por muito sofrimento (de 1949 a 1978)
- e por muito progresso (entre 1978 a 2019).
A China tem mostrado vontade e capacidade para deixar para trás a miséria e o subdesenvolvimento. O país tem demonstrado determinação para realizar grandes obras, como a do novo Aeroporto Internacional de Pequim-Daxing – conhecido como estrela-do-mar, inaugurado uma semana antes da data de aniversário dos 70 anos da Revolução de 1949.
Mas o caminho para se tornar uma potência internacional,
- com alto padrão de vida para a população
- e com respeito ao meio ambiente
- não será tranquilo e sem obstáculos.
A China adota o modelo conhecido como “Consenso de Beijing” que se opõe ao modelo liberal conhecido como “Consenso de Washington”.
Até recentemente
- os cientistas políticos consideravam que um país só atinge alto nível de desenvolvimento socioeconômico se adotar os princípios do regime democrático.
- Porém, a China está prestes a se tornar um país desenvolvido e com liderança tecnológica,
- mesmo sendo um regime autoritário e com alto grau de controle da mídia e das redes sociais.
O Império Soviético também comemorou 70 anos. Mas caiu logo em seguida.
Contudo, o “Império do Meio” Vermelho
- pensa no longo prazo
- e já vislumbra um horizonte de sucesso em 2049,
- nos 100 anos da Revolução Comunista Chinesa.
Resta saber se conseguirão chegar aos píncaros
- sem grandes atritos com a comunidade internacional,
- sem grandes revoltas no território nacional
- e sem a destruição da base ecológica,
que é a condição necessária para o florescimento de qualquer civilização.
Referências:
José Eustáquio Diniz Alves
Leia mais:
- China, nova potência mundial – Contradições e lógicas que vêm transformando o país. Revista IHU On-Line Nº 528
- China: a nova potência mundial?. Revista IHU On-Line Nº 104
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