São Francisco chamou todas as criaturas – e não apenas aqueles animais não humanos que classificamos como sencientes, mas também rochas e árvores – seus irmãos e irmãs porque, em sentido real, eles o são. Não sobrevivemos sem elas. Mas elas podem sobreviver sem nós.
de Daniel P. Horan – 18 Set 2019
Tradução: Orlando Almeida
Foto: Uma estátua de São Francisco de Assis em Monterosso al Mare, Cinque Terre, Itália. (Wikimedia Commons / Gianfranco Negri)
Na semana passada, num esforço para continuar comemorando e chamando a atenção para a Season of Creation [Tempo da Criação], tuitei a seguinte observação:
“Os seres humanos são chamados a cuidar de nossa Irmã Mãe Terra, não porque ela tenha sido criada para nosso único uso e dominação, mas porque nós, como espécie, somos os únicos que pecamos abusando dela e dos seus outros habitantes. Pelos nossos pecados ecológicos, Senhor, tende piedade! SeasonOfCreation. “
Não registrei as respostas iniciais a esse tuíte porque tenho uma política de silenciar ou bloquear ‘trolls’ da Internet, e muitas vezes as respostas iniciais a quase tudo o que eu tuíto tendem a ser negativas, maliciosas ou ad hominem. Então eu as ignoro.
Eventualmente, vejo que não-trolls, às vezes até amigos ou colegas, se envolvem nesses trolls. Em tais casos, posso perceber que há uma conversa em andamento e posso até dar uma olhada rápida para ver de que trata a discussão.
Em resposta a este particular tuíte sobre a criação, parece que algumas pessoas discordaram do meu uso do descritor “nossa Irmã Mãe Terra”, e uma pelo menos me chamou de “pagão”. Como observou com razão outro franciscano, em resposta,
- o título “nossa Irmã Mãe Terra”
- é uma citação direta de São Francisco de Assis, um dos santos mais populares do cristianismo e o santo padroeiro da ecologia (assim chamado pelo Papa São João Paulo II em 1979).
O título vem do verso 9 do “Cântico das Criaturas“ de São Francisco:
“Louvado sejas Tu, meu Senhor, por nossa Irmã Mãe Terra, que nos sustenta e nos governa, e que produz vários frutos com flores coloridas e ervas”.
É também um título que o Papa Francisco usa duas vezes no parágrafo de abertura da sua carta encíclica de 2015, “LAUDATO Sí, sobre o Cuidado da Nossa Casa Comum ”
Por estas razões,
- pensar que o meu uso desse epíteto cristão tradicional para o nosso planeta era “pagão”, ou de alguma forma antitético em relação à visão católica da criação,
- é ridículo e merece ser ignorado.
Mas
- quanto mais eu pensava nessa troca relativamente menor de mídia social, decorrente de uma observação obviamente ignorante,
- mais eu me lembrava de uma questão mais profunda no catolicismo popular para a qual ela aponta.
A maioria dos cristãos acredita que
- Deus criou o cosmos apenas para a nossa espécie
- e que qualquer referência à criação não-humana, como relacionada a nós,
- deve ser considerada ingênua ou romântica na melhor das hipóteses, ou “pagã” ou “anticristã” na pior delas.
E até nos disseram para acreditar que a nossa espécie não é apenas o ponto mais alto da criação, mas também o único aspecto da ordem criada que realmente importa.
Em Laudato Si’ , o Papa Francisco
- qualifica corretamente este equívoco como “antropocentrismo”,
- que é a visão equivocada de que tudo gira em torno da humanidade.
Essa visão de mundo centrada no homem
- eleva o nosso lugar na vasta e diversificada criação de Deus,
- sujeitando ao mesmo tempo qualquer coisa (ou qualquer pessoa) que nós consideremos insuficientemente humana.
A humanidade – ou pelo menos a visão de algumas pessoas sobre a humanidade autêntica – torna-se o padrão com que todo o universo é avaliado.
Neste contexto,
- não é de admirar que as pessoas confundam a reflexão de São Francisco sobre a inter-relação de todas as criaturas de Deus numa comunidade singular de criação
- com algo “pagão”.
Sob as lentes do antropocentrismo,
- é bobagem ou até mesmo completamente inapropriado referir-se à Terra – que o papa chama de “nossa casa comum” – ou qualquer aspecto não humano da criação
- em termos de fraternidade ou maternidades.
Mas foi exatamente isso que São Francisco fez, e ele o fez porque reconheceu a verdade de nossa interdependência como criaturas.
A maioria das pessoas recusa-se a levar a sério São Francisco de Assis. Não me interpretem mal, mas
- a maioria das pessoas – tanto cristãs quanto não cristãs – amam São Francisco,
- mas elas amam-no e amam o seu legado pelo motivo errado.
A narrativa dominante sobre São Francisco é a de que
- ele era alguém que simplesmente “amava os animais”,
- razão pela qual a sua imagem é colocada em jardins do mundo todo e as pessoas levam os seus animais de estimação à igreja para receber uma bênção no dia da sua festa.
As pessoas geralmente gostam de São Francisco porque
- o vêem como uma figura ingênua, romântica, gentil, agradável e não ameaçadora.
- No entanto, as fontes franciscanas mais antigas revelam que ele era tudo menos estas coisas.
Alguns anos atrás, ao fazer uma homilia durante a liturgia do Congresso de Educação Religiosa de Los Angeles com o tema “cuidado da terra”, cunhei uma frase para explicar as origens e a perpetuação dessa visão popular de São Francisco como um romântico inofensivo que amava os animais: o “complexo industrial do bebedouro de pássaros”.
Foto: Em muitas casa, praças e jardins, existe um Bebedouro para os Pássaros
Por “complexo industrial de bebedouro dos pássaros”,
- refiro-me a todos os fatores e julgamentos difusos
- que resultam em manter São Francisco como uma caricatura da visão teológica profundamente perspicaz que ele articulou no seu “Cântico das Criaturas” e durante a sua vida toda.
Toda a vez que
- reduzimos o santo a um mascote de zoológico medieval
- ou afirmamos simplesmente que ele “amava os animais”
- sem considerar a verdade radical acerca de Deus e da criação que ele tinha em mente,
- estamos contribuindo e operando de acordo com a lógica do “complexo industrial do bebedouro de pássaros”.
São Francisco
- chamou todas as criaturas – e não apenas aqueles animais não humanos que classificamos como sencientes, mas também rochas e árvores – seus irmãos e irmãs
- porque, em sentido real, eles o são.
No nível elementar, compartilhamos um tipo de DNA composicional comum, feito porque somos das mesmas substâncias que tudo o mais que existe: carbono, oxigênio, hidrogênio, nitrogênio e assim por diante. É isso que Gênesis 2 proclama com presciência e é o que nós, humanos, tantas vezes recusamos aceitar:
- que somos feitos do “pó da terra” ( ha-adamah em hebraico)
- e ao pó, como todas as criaturas, retornaremos.
No nível evolutivo, compartilhamos uma história comum de bilhões de anos de desenvolvimento e de emergência, começando com origens biológicas semelhantes.
- Fazemos parte de um entangled bank [banco emaranhado], como Charles Darwin criativamente o definiu,
- unido a outras criaturas pelos galhos da grande árvore genealógica da criação.
Num nível pragmático, nós sobrevivemos apenas devido aos cuidados e recursos que o resto da família da criação nos fornece.
- O ar que respiramos,
- as roupas que vestimos,
- a comida que comemos,
- a água que bebemos
- – nada disso é de nossa própria feitura.
Nós não podemos sobreviver sozinhos.
- Somos, sob muitos aspectos,
- uma espécie extremamente fraca e vulnerável,
- dependente do restante da criação para nossa existência diária.
No nível teológico, existem duas categorias nas quais tudo cai:
- ou você é Deus
- ou é uma criatura.
Apesar do nosso distorcido sentimento coletivo de nós mesmos,
- nós não somos Deus;
- nós somos criaturas também.
Consequentemente, reconhecemos não apenas uma origem biológica comum, mas também uma origem divina comum e singular.
Como cristãos,
- acreditamos que fazemos parte da família de criação de Deus, mas raramente agimos como tais,
- optando por seguir o modelo primordial de Gênesis 3 , a fim de nos colocarmos no lugar de Deus.
Estamos testemunhando as consequências dessa arrogância expostas diante de nós nas multiformes crises de poluição, extinção e mudança climática global.
Na minha última coluna , escrevi sobre como a mudança climática é hoje a mais importante questão de vida.
- A persistente negação da sua realidade
- e a ameaça cataclísmica que a mudança climática global representa para toda a vida neste planeta – incluindo a vida humana –
- é alimentada em parte pela recusa de ir além da lógica do “complexo industrial do bebedouro de pássaros”.
Em vez disso, nós frequentemente preferimos diluir
- os ensinamentos teológicos radicais e espirituais de figuras como São Francisco
- ou passagens das Escrituras, como as encontradas nos Capítulos 38 e 39 do Livro de Jó,
- ou no Livro de Gênesis ou nos Salmos e em outros lugares.
Da mesma forma, preferimos descartar ou ignorar o consenso científico mundial de que estamos numa situação extremamente grave.
- O que São Francisco e o Papa Francisco, e eu e outros, pretendemos transmitir quando falamos de “nossa Irmã Mãe Terra”
- não é algum tipo de cripto-paganismo,
- mas a verdade profundamente cristã e científica de que nós, como todos os habitantes da “nossa casa comum”,
- estamos ligados e dependentes deste planeta de maneira análoga a uma criança no ventre de uma mãe.
Aquela mãe – a Terra – e todos os seus filhos estão enfrentando um omnicídio ecológico iminente, do qual ninguém escapará. Portanto, enquanto ridicularizamos este perigo claro, perpetuamos as mentiras do “complexo industrial do bebedouro de pássaros” e promovemos uma cultura da morte.
Daniel P. Horan
é um frade franciscano e professor assistente de teologia e espiritualidade sistemática na Catholic Theological Union em Chicago. Siga-o no Twitter: @DanHoranOFM .
NOTA DO TRADUTOR:
“Irmãs e Irmãos”,
Talvez vocês estranhem este tratamento, mas seria assim que Francisco de Assis nos trataria, se tivéssemos tido a ventura de o encontrar neste mundo.
Talvez vocês também estranhem o título desta matéria, que se refere a um “complexo industrial do bebedouro de pássaros”. Também achei estranho, no início. Mas, depois de terminar a tradução, entendi, como certamente vocês também entenderão.
O autor, um frade franciscano, usa a ironia para mostrar como a mensagem de Francisco de Assis, de amor para com a nossa Irmã Mãe Terra, tem sido desvirtuada e reduzida por muitos, cristãos e não-cristãos, a uma atitude ingênua, às vezes até frívola, tomando como exemplo dessa atitude, as birdbaths (literalmente ‘banheiras de pássaros’) colocadas nos jardins das casas, mas também em logradouros públicos, para banho e dessedentação dos pássaros. Apesar disso, essa prática tornou-se economicamente relevante para os construtores de fontes ornamentais, chafarizes e fontanários e sobretudo para os fabricantes de birdbaths. É a estes que o autor dá a significativa e apropopriada denominação de ‘birdbath industrial complex’ (complexo industrial de bebedouro de pássaros).
A propósito, se tiverem interesse (e tempo), dêem uma olhada às fotos da extensa e variadíssima exposição de birdbats em:
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