Slavoj Žižek* – 04/09/2019
A Tradução é de Artur Renzo.
O jogo ridículo da Europa culpando o Brasil e o Brasil culpando a Europa precisa parar.
A gravidade da ameaça ecológica deixa claro a urgência de uma forte agência global com o poder de coordenar as medidas necessárias.
Será que a exigência por uma ação desse tipo não aponta na direção daquilo que certa vez chamamos de Comunismo?
Logo que as queimadas nas florestas amazônicas desapareciam das nossas manchetes, chega a notícia de que
- quase 4.000 novos incêndios florestais foram iniciados no Brasil
- apesar do decreto emitido dias antes pelo governo brasileiro proibindo queimadas intencionais na Amazônia Legal.
Esses números não podem senão acionar um alarme: estamos de fato caminhando em direção a um suicídio coletivo?
Diz-se que “com a destruição das florestas amazônicas, os brasileiros estão matando os pulmões do mundo…”
No entanto,
- se quisermos confrontar seriamente as ameaças ao nosso meio-ambiente,
- o que devemos evitar é precisamente esse tipo de extrapolação célere que fascina nossa imaginação.
Duas ou três décadas atrás, todo mundo na Europa estava falando sobre o fenômeno da Waldsterben, a morte paulatina das florestas,
- o assunto estava presente nas capas de todos os semanários populares,
- havia cálculos sobre como em meio século a Europa ficaria sem florestas…
- agora há mais florestas na Europa do que no século vinte,
- e estamos nos tornando cientes de outros perigos,
- do que acontece nas profundezas dos oceanos, por exemplo.
Embora devamos levar extremamente a sério as ameaças ecológicas, é também preciso estar plenamente consciente do quão incertas são as análises e projeções nesse quesito – só teremos certeza do que está de fato ocorrendo quando já será tarde demais.
- Extrapolações rápidas só fornecem argumentos para os negacionistas climáticos,
- então devemos evitar a todo custo a “ecologia do medo”,
- uma apressada fascinação mórbida por uma catástrofe absoluta.
A ecologia do medo
- tem todas as chances de se tornar a forma predominante de ideologia do capitalismo global,
- um novo ópio das massas substituindo a religião em declínio.
Afinal, ela assume a função fundamental da velha religião,
- a de instalar uma autoridade inquestionável
- capaz de impor limites.
A lição que essa ecologia está constantemente martelando é a da nossa finitude:
- somos apenas uma das espécies que habitam este nosso planeta Terra,
- estamos enraizados em uma biosfera que ultrapassa vastamente nosso horizonte.
Ao explorarmos os recursos naturais, estamos pegando emprestado do futuro,
- de modo que devemos tratar nosso planeta com respeito, c
- omo algo em última instância Sagrado,
- algo que não deve ser totalmente desvelado,
- que deve e irá para sempre permanecer um Mistério,
- um poder no qual devemos confiar, não dominar.
Embora não possamos adquirir pleno domínio sobre nossa biosfera, temos infelizmente o poder de fazê-la descarrilar, de perturbar seu equilíbrio de modo a fazer com que ela entre em descontrole, nos varrendo do mapa nesse processo.
É por isso que, embora os ecologistas estejam a todo tempo demandando uma mudança radical em nosso modo de vida, por trás dessa demanda reside seu exato oposto:
- uma profunda desconfiança diante da mudança, do desenvolvimento, do progresso;
- cada transformação radical pode ter a consequência não-intencionada de deflagrar uma catástrofe.
As coisas ficam ainda mais traiçoeiras neste ponto.
- Mesmo quando professamos uma pronta disposição de assumir nossa responsabilidade por catástrofes ecológicas,
- isso pode ser um estratagema traiçoeiro para efetivamente evitar as verdadeiras dimensões da ameaça em jogo.
Há algo ardilosamente reassegurador nessa prontidão de se assumir a culpa pelas ameaças ao nosso meio-ambiente:
- gostamos de nos sentir culpados porque,
- se somos culpados isso significa que tudo depende de nós,
- nós é que estamos dando as cartas da catástrofe,
- de modo que também podemos nos salvar simplesmente mudando nossas vidas.
O que é realmente difícil de aceitarmos (ao menos nós do Ocidente)
- é estarmos reduzidos a um papel puramente passivo de observador impotente
- que só pode assistir impotentemente o desenrolar de seu destino.
A fim de evitar essa situação, estamos propensos a mergulhar obsessiva e freneticamente em atividades,
- reciclar papéis velhos,
- comprar comida orgânica, o que quer que seja,
- simplesmente para que possamos ter a certeza de que estamos fazendo alguma coisa,
- dando a nossa contribuição
– assim como um torcedor de futebol que torce pelo seu time na frente de uma tela de televisão em sua casa, gritando e saltando de seu sofá, encenando uma crença supersticiosa de que isso de alguma maneira poderá influenciar no resultado da partida…
É verdade que a forma típica de renegado fetichista no que diz respeito à ecologia é:
“Eu sei muito bem (que estamos todos ameaçados), mas na prática eu ajo como se não acreditasse (de modo que não estou disposto a fazer nada realmente importante, como mudar meu estilo de vida).”
Mas há também a forma inversa de renegado:
- “Eu sei muito bem que não posso de fato influir sobre o processo que pode levar à minha ruína (como uma explosão vulcânica),
- mas ainda assim é traumático demais para mim aceitar isso,
- de forma que não posso resistir ao impulso de fazer algo, mesmo sabendo que em última instância não fará a menor diferença…”
Não é exatamente por esse mesmo motivo que compramos comida orgânica?
- Quem realmente acredita que aquelas maçãs “orgânicas” caras e feiinhas de fato são mais saudáveis?
- O ponto é que, ao comprá-las, não estamos simplesmente adquirindo e consumindo um produto
- – estamos ao mesmo tempo fazendo algo dotado de significado,
- estamos demonstrando nosso engajamento e consciência globais,
- estamos participando de um grande projeto coletivo… –
A ideologia ecológica predominante nos trata como culpados a priori, em dívida com a mãe natureza, sob a constante pressão da agência ecológica superegóica que nos interpela em nossa individualidade:
- “O que você fez hoje para pagar sua dívida para com a natureza?
- Você colocou todos os jornais em um lixo reciclável adequado?
- E todas as garrafas de cerveja ou latas de Coca?
- Você usou o seu carro onde poderia ter optado por uma bicicleta ou algum transporte público?
- Usou ar condicionado em vez de simplesmente abrir as janelas?”
É fácil discernir o que está em jogo ideologicamente nesse tipo de individualização:
- me perco em meu próprio autoexame
- ao invés de levantar questões globais mais pertinentes sobre a nossa civilização industrial como um todo.
A ecologia se empresta facilmente a mistificações ideológicas: como pretexto
- para os obscurantismos New Age (elogio aos “paradigmas” pré-modernos etc.),
- ou para o neocolonialismo (reclamações vindas do Primeiro Mundo sobre como o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo como o Brasil ou a China estão ameaçando todos nós),
- ou como uma causa de honra de “capitalistas verdes” (compre verde, recicle… como se levar em conta a ecologia justifique a exploração capitalista).
Todas essas tensões explodiram nas reações aos recentes incêndios na Amazônia.
Há cinco estratégias principais para ofuscar as verdadeiras dimensões da ameaça ecológica:
(1) simples ignorância: trata-se de um fenômeno marginal, não digno de nossa preocupação, vida que segue, a natureza vai cuidar de si mesma;
(2) a ciência e a tecnologia podem nos salvar;
(3) deixe a solução a cargo do mercado (maior taxação dos agentes poluidores etc.);
(4) pressão superegóica sobre a responsabilidade pessoal ao invés de medidas sistêmicas de grande porte: cada um de nós deve fazer o que pode (reciclar, consumir menos etc.);
(5) talvez o pior de todos seja a promoção da ideia de um retorno ao equilíbrio natural, para uma vida mais modesta e tradicional por meio da qual possamos renunciar a húbris humana e nos tornar novamente respeitosos filhos de nossa Mãe Natureza.
Todo esse paradigma da Mãe Natureza descarrilhada por nossa húbris (exagero, excesso, arrogância – NdR) está errado:
- o fato de que nossas principais fontes de energia (petróleo, carvão) sejam resquícios de antigas catástrofes que ocorreram antes do advento da humanidade
- é um claro lembrete de que a Mãe Natureza é uma megera fria e cruel…
Isso tudo, evidentemente,
- não implica de forma alguma que devamos relaxar e confiar em nosso futuro:
- o fato de que não está claro o que de fato está ocorrendo torna a situação ainda mais perigosa.
Além disso, como está rapidamente ficando evidente,
- as migrações (e os muros erguidos para barrá-las) estão ficando cada vez mais entrelaçadas com perturbações ecológicas como o aquecimento global,
- de modo que o apocalipse ecológico e o apocalipse dos refugiados
- estão cada vez mais sobrepostos naquilo que Philip Alston, um Relator Especial da ONU, aparentemente denominou o “apartheid climático”.
Nas palavras dele,
“perigamos nos ver diante de um cenário de ‘apartheid climático’ no qual
- os ricos pagam para escapar do sobreaquecimento, da fome e do conflito
- ao passo que o resto do mundo é deixado a sofrer.”
Os menos responsáveis pelas emissões globais são também os menos capacitados para se protegerem.
Então, a questão leninista: o que fazer?
Estamos em uma profunda enrascada: não há uma solução “democrática” simples aqui.
- A ideia de que as próprias pessoas (não apenas governos e corporações) devam decidir parece profunda,
- mas ela exige que seja respondida uma questão importante:
- mesmo que seu entendimento não seja distorcido por interesses corporativos,
- o que as habilita a fazer um juízo a respeito de um assunto tão delicado?
E mais: as medidas radicais defendidas por alguns ecologistas podem elas próprias deflagrar novas catástrofes.
- Peguemos a ideia da Gestão da Radiação Solar (SRM),
- a contínua e massiva liberação de aerossóis em nossa atmosfera para refletir e absorver a luz solar e assim resfriar o planeta.
No entanto, o projeto de SRM é extremamente arriscado:
- ele poderia reduzir colheitas,
- alterar o ciclo hídrico de maneira irreparável,
para não falar de muitos outros fatores que sequer podemos saber que desconhecemos –
- não podemos sequer imaginar como o frágil equilíbrio de nosso planeta funciona,
- e de quais maneiras imprevisíveis esse tipo de geoengenharia poderia perturbá-la.
Mas o que podemos fazer é
- ao menos estabelecer nossas prioridades
- e admitir o caráter absurdo de nossos jogos de guerra política
- quando o próprio planeta pelo qual as guerras são travadas está sob ameaça.
O jogo ridículo da Europa culpando o Brasil e o Brasil culpando a Europa precisa parar.
- As ameaças ecológicas deixam claro que a era dos Estados-nação soberanos está chegando ao seu fim.
- É preciso uma forte agência global com o poder de coordenar as medidas necessárias.
- E será que a exigência de uma ação desse tipo não aponta na direção daquilo que certa vez chamamos de “Comunismo”?
* * *
Slavoj Žižek
nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade.
Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London.
Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa(ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014), O absoluto frágil(2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política(2016).
Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2019/09/04/zizek-a-amazonia-esta-em-chamas-e-dai/
Leave a Reply