A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado em La Croix International, 26-03-2019.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O bispo Charles Morerod, que é reconhecido como um dos principais intelectuais da hierarquia católica da Europa, disse recentemente ao La Croix que
“a Igreja reforma a si mesma sob a influência de forças aparentemente adversas”.
O dominicano suíço de 57 anos, bispo da Diocese de Lausanne-Genebra-Friburgo desde 2011,
- estava se referindo à crise dos abusos sexuais
- e a como ela está pondo pressão na mudança da Igreja Católica.
A pressão crescente é um fator-chave a ser levado em consideração nos debates dentro da Igreja sobre as reformas institucionais que são necessárias para abordar o modo como os bispos fracassaram ao lidar com os casos de abuso sexual. Mas essa pressão sobre a Igreja institucional inegavelmente é diferente hoje que no passado.
♣ Primeiro,
- há uma pressão do debate interno (dentro da Igreja),
- assim como de forças externas (a mídia, a sociedade e a cultura, o Estado e o judiciário).
Essa pressão é mais visível e pública do que no passado.
E também é
- algo muito mais difícil de controlar para a Igreja institucional,
- não por medidas coercitivas,
- mas no sentido de controlar a narrativa.
É aí que a fronteira entre o debate interno e as forças externas fica borrada. Os meios de comunicação de massa e as mídias sociais mudaram a conversa dentro da Igreja Católica, criando consequências profundas que estão realmente além da compreensão de qualquer um.
♣ Segundo,
- o debate interno mostrou grandes divisões entre os católicos
- de um modo nunca antes público.
Alguns católicos pensam que o debate sobre a reforma eclesial deveria incluir
- uma reconsideração da teologia do sacerdócio
- e da formação no seminário,
- o papel dos leigos e das mulheres,
- e do ensino da Igreja sobre a sexualidade.
Outros têm uma agenda restauracionista e puritana
- que vê a homossexualidade como a causa da crise atual
- e que vê como cúmplices aqueles que não concordam com seu chamado a uma “caça às bruxas” contra os gays.
Essa tensão causada por essas polaridades não é necessariamente ruim. O Papa Francisco acredita que
- as polaridades são necessárias
- a fim de ajudar que a verdade possa emergir plenamente.
O problema é que, em algumas Igrejas locais, como nos Estados Unidos, o debate intraeclesial tende a ser mais polarizado do que o papa provavelmente pode imaginar.
Tudo isso faz com que
- o ponto de vista de Dom Morerod sobre a necessidade de pressionar a Igreja
- seja ainda mais importante, especialmente a partir de uma perspectiva histórica.
No longo curso do desenvolvimento doutrinal, por exemplo,
- as heresias desempenharam um papel importante
- ao empurrar os teólogos e os pastores da Igreja na direção de um entendimento correto e mais completo sobre Deus.
De maneira semelhante,
- as reformas institucionais dentro da Igreja
- nasceram principalmente via negativa;
- isto é, a partir de uma reação contra algo.
A Igreja raramente mudou espontaneamente. Ela fez isso quase sempre por causa da pressão.
Na maioria das vezes, isso vem de fora –
- da pressão,
- repressão
- e perseguição política e cultural,
- e da indignação causada pela revelação do escândalo.
O problema é que nem todas as mudanças constituem uma reforma real. Por exemplo,
- o Concílio Vaticano I (1869-70) modernizou o poder papal
- sem realmente introduzir muita coisa no caminho da reforma doutrinal.
A história do catolicismo do século XIX nos lembra dos efeitos negativos que a pressão externa pode criar em uma instituição religiosa que se percebe sob cerco.
- O período do ultramontanismo, entre os anos 1820 e o Vaticano I,
- criou uma cultura política e religiosa na Igreja de resistência e de reação contra a pressão externa.
- O liberalismo e a modernidade foram as derrotas contra as quais ela elaborou uma nova estratégia de sobrevivência.
Ao longo da história, não houve nenhuma mudança na Igreja sem pelo menos alguma pressão externa. E a atual crise dos abusos provocou uma enorme pressão externa para que ela mude novamente – Massimo Faggioli – Tweet
Em uma Igreja dominada por uma “mentalidade de cerco”,
- falar de reforma muitas vezes soa como traição
- ou até mesmo como heresia.
E, mesmo assim, o catolicismo do “longo século XIX”, que terminou em 1958 com a morte de Pio XII,
- estava desenvolvendo a sua própria modernização
- ao mesmo tempo em que lutava contra as forças da modernização secularista e totalitária, como aponta James Chappel em seu recente livro intitulado “Catholic Modern”.
No entanto, esse não foi exatamente um momento de reforma institucional.
Uma das diferenças no modo como a pressão funciona na Igreja atualmente, em comparação com o passado, é que, até recentemente, “a Igreja Católica” era entendida mais ou menos como uma entidade sob um rígido controle institucional.
Pelo menos isso era verdade em princípio e de modo perceptível. Havia um ajuste natural com a mentalidade de cerco.
- Por um lado, isso tornava a reforma eclesial muito mais difícil.
- Mas, por outro lado, isso também mostrava claramente o único caminho pelo qual a reforma podia seguir em frente –
- por meio do Vaticano, dos bispos, do clero e dos teólogos que eram ouvidos pelos tomadores de decisão da Igreja.
Esse sistema, agora, em grande parte, desapareceu.
- A reconsideração teológica que levou ao Concílio Vaticano II (1962-1965)
- foi possível ao abandonar essa mentalidade de cerco,
- que reduzira a Igreja a uma postura defensiva, triunfalista em sua retórica,
- mas insegura em suas relações com o mundo moderno.
No Vaticano II, a Igreja se abriu ao diálogo com o mundo e à renovação teológica e espiritual.
Ela fez isso seguindo dois princípios: o ressourcement (refontalização: uma redescoberta das fontes da tradição) e o aggiornamento (uma abertura aos recursos da modernidade).
Mas essa abertura ao mundo teve custos inegáveis. Claramente, o Vaticano II ainda pertencia a um padrão de relação Igreja-mundo que agora não existe mais. Até alguns anos atrás, era muito mais difícil para um católico individual saber o que estava acontecendo do outro lado do mundo.
Também era muito mais difícil para essa pessoa ser alcançado por “narrativas” e agendas particulares relativas à Igreja contemporânea.
Até o fim do século XX,
- a pressão externa criou uma contrapressão interna em uma Igreja
- que era mais controlada pela instituição eclesiástica,
- mas também pelo sistema social e cultural, em que se assumia que a Igreja podia cuidar de si mesma.
A Igreja institucional, desde então, perdeu o seu monopólio sobre a reforma. Há muitas razões para isso.
- Alguns são teológicos,
- mas, principalmente, eles têm a ver com o papel mutante da Igreja em um mundo moderno e pluralista.
Assim,
- tornou-se discutível se o ressourcement e o aggiornamento – e de que tipo –
- ainda podem levar a Igreja Católica de hoje a um caminho rumo à reforma institucional e teológica ou não.
Isso porque a Igreja que está passando pela crise dos abusos é a mesma que passou pela renovação do Vaticano II.
A crise dos abusos sexuais do clero criou novas tensões e novas possibilidades. Mas despertou a tentação do entrincheiramento. A pressão de grupos católicos e de forças externas, que não confiam na capacidade da Igreja de policiar a si mesma, é uma espada de dois gumes – a favor ou contra a genuína reforma eclesial.
Massimo Faggioli
https://international.la-croix.com/news/the-church-under-pressure-reform-or-counter-reform/9754
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