Leonardo Boff – 13/03/2019 – Foto: Carta Maior / Daqui:
Por que a Igreja romano-católica não abole a lei do celibato? Porque seria contraditório à sua estrutura de base.
Ela é, socialmente, (teologicamente demandaria outro tipo de reflexão) uma instituição total, autoritária, patriarcal, machista e fortemente hierarquizada.
Uma Igreja que se estrutura ao redor do poder sagrado realiza o que C. G. Jung denunciava: “onde predomina o poder aí não há amor nem ternura”.
É o que ocorre com o machismo e a rigidez, não em todos, mas em significativa parte dos padres e bispos que presidem as comunidades cristãs.
É inegável a coragem do Papa Francisco ao enfrentar abertamente a questão da pedofilia dentro da Igreja.
- Fez entregar à justiça civil os pedófilos
- desde padres, religiosos até Cardeais
- para serem julgados e punidos.
No Encontro em Roma, em fins de fevereiro de 2019, para a Proteção dos Menores,
- o Papa impôs 8 determinações entre as quais
- a “pedofilia zero”
- e “a proteção das crianças abusadas”
O Papa aponta a chaga principal:
“o flagelo do clericalismo que é o terreno fértil para todas estas abominações”.
Clericalismo aqui significa
- a centralização de todo o poder sagrado no clero,
- com a exclusão de outros,
- que se julga acima de qualquer suspeita e crítica.
Ocorre que gente do clero
- usa esse poder
- que, de si, deveria irradiar confiança e reverência,
- para abusar sexualmente de menores.
Entretanto, a meu ver, o atual Papa e todos os anteriores, não levaram a questão até ao fundo, por razões que abaixo tento esclarecer: a sexualidade e a lei do celibato.
Quanto à sexualidade importa reconhecer que
- a Igreja-grande-insituição-piramidal
- alimentou historicamente uma atitude de desconfiança e até negativa face à sexualidade.
É refém de uma visão errônea, advinda da tradição platônica e agostiniana.
- Santo Agostinho via a atividade sexual como o caminho pelo qual entra o pecado original.
- Por ele, de nascença, cada ser humano
- se faz portador de uma mancha, de um pecado, sem culpa pessoal,
- em solidariedade com o pecado dos primeiros pais.
Quanto menos sexo procriatiavo, menos “massa damnata” (massa condenada).
- A mulher, por ser geradora, introduz no mundo o mal originário.
- Negava-se a ela a plena humanidade. Era chamada “mas” que em latim significa “homem não completo”.
Todo anti-feminismo e machismo na Igreja romano-católica, encontram aqui seu pressuposto teórico discutível em termos filosóficos e teológicos.
Daí o alto valor atribuído ao celibato, porque,
- não havendo relação sexual-genital com uma mulher, não nascerão filhos e filhas.
- Assim não se transmitiria o pecado original e a humanidade ficaria destarte mais purificada.
Os criminosos abusos sexuais de menores praticados por celibatários, mostram que o celibato, por si só, não significa necessariamente uma purificação da humanidade.
- Em todas as análises e condenações feitas sobre a pedofilia
- não se discutiu ainda o problema subjacente: a sexualidade.
- O ser humano não tem sexo. Ele é todo inteiro sexuado no corpo e na alma. O sexo é tão essencial que por ele passa a continuidade da vida.
Temos a ver com uma realidade misteriosa e extremamente complexa.
A reflexão oficial até hoje
- não se confrontou positivamente com aqueles que detidamente pesquisaram a sexualidade como
- Freud, Jung, Adler, Fromm, Winnicott, Lacan, Rollo May, Simone de Bouvoir, Ana Freud, Rose Marie Muraro, Janette Paris
- entre tantos e tantas.
Teria muito que aprender destas contribuições, sem renunciar às eventuais críticas.
De modo geral podemos dizer que
- a Igreja oficial e mesmo a própria teologia não elaboraram uma leitura e um ideal,
- digamos até, uma utopia para a sexualidade humana.
O que houve sim, foi
- muito moralismo que trouxe e ainda traz angústia e sofrimento
- para os cristãos que querem orientar suas vidas pelo caminho cristão.
- O documento do Papa Francisco Amoris Laeticia (A legria do amor) delineia alguns pontos luminosos nesta linha. Mas devemos ir mais longe e mais fundo.
O pensador francês Paul Ricoeur que muito refletiu filosoficamente sobre a teoria psicanalítica de Freud escreveu:
- “A sexualidade, em seu fundo, permanece, talvez, impermeável à reflexão e inacessível ao domínio humano;
- talvez essa opacidade faz com que ela não possa ser reabsorvida numa ética nem numa técnica” (Revista Paz e Terra n. 5 de 1979 p. 36).
Ela vive
- entre a lei do dia onde vigoram os comportamentos estatuídos
- e a lei da noite onde funcionam as pulsões livres.
Só
- uma ética do respeito face ao outro sexo
- e um auto-controle permanente sobre essa energia vulcânica,
- podem transformá-la em expressão de troca afetiva e de amor a dois
- e não numa obsessão e numa perversão.
Sabemos como é insuficiente a educação para a integração da sexualidade na formação dos padres nos seminários.
- Ela é feita longe do contacto normal com as mulheres,
- o que produz certa atrofia na construção da identidade.
Por que Deus criou a humanidade, enquanto homem e mulher (Gn1,27)? Não primeiramente para gerarem filhos. Mas para não ficarem sós e serem um vis-a-vis uma ao outro e companheiros na diferença (Gn 2,18).
As ciências da psiqué nos deixaram claro que o homem só amadurece sob o olhar da mulher e a mulher sob o olhar do homem.
Homem e mulher são em si completos, em cada um há a porção masculina e feminina, embora em proporções diferentes. mas, por sua natureza, são recíprocos e se enriquecem mutuamente na diferença.
O sexo genético-celular mostra que a diferença entre homem e mulher em termos de cromossomos, se reduz a apenas um cromossomo. A mulher possui dois crosmosomos XX e o homem um cromosomo X e outro Y. Donde se depreende que
- o sexo-base é o feminino (XX),
- sendo o masculino (XY) uma diferenciação dele.
Não há pois um sexo absoluto, mas apenas um dominante. Em cada ser humano, homem e mulher, existe “um segundo sexo“.
Na integração do “animus” e da “anima”, explico, das dimensões do feminino e do masculino presentes em cada pessoa, se gesta a maturidade humana e sexual.
Neste processo, o celibato não é excluido.
- Pode ser uma opção pessoal legítima.
- Mas na Igreja ele é imposto como pré-condição para ser padre ou religioso.
Por outro lado,
- o celibato não pode nascer de uma carência de amor,
- mas de uma superabundância de amor a Deus,
- transbordando aos outros, em especial, aos mais carentes de afeto.
Por que a Igreja romano-católica não abole a lei do celibato? Porque seria contraditório à sua estrutura de base.
Ela é, socialmente, (teologicamente demandaria outro tipo de reflexão) uma instituição
- total,
- autoritária,
- patriarcal,
- machista
- e fortemente hierarquizada.
Uma Igreja que se estrutura ao redor do poder sagrado realiza o que C. G. Jung denunciava:
- “onde predomina o poder aí não há amor nem ternura”.
É o que ocorre com o machismo e a rigidez, não em todos, mas em significativa parte dos padres e bispos que presidem as comunidades cristãs.
Não obstante as limitações assinaladas, importa assinalar que
- são muitos, diria até, grande parte,
- que vivem o celibato exemplarmente,
- e espiritualizam com as renúncias que ele exige (Jesus fala até em “castração” em função do Reino de Deus)
- e irradiam integridade, jovialidade
- e mostram que o celibato pode ser um caminho possível de realização de sua própria humanidade.
Para corrigir os desvios de celibatários,
- o Papa Francisco não se cansa de pregar “a ternura e o encontro afetuoso” com os outros,
- alimentado por uma viva intimidade com Deus em oração e meditação cotidianas.
Entretanto, assim como há séculos se configura enquanto lei imposta aos sacerdotes, o celibato se faz funcional à Igreja clerical, só e solitária.
- A perdurar este tipo de Igreja, não esperemos por enquanto a abolição da lei do celibato.
- Ele é útil para ela
- mas muito menos para os fiéis.
E como fica a utopia de Jesus de uma comunidade fraternal e igualitária?
Se vivida, mudaria tudo na Igreja e também, em parte, da humanidade, animada pelo sonho bom e extremamente humanitário do Mestre de Nazaré.
Leonardo Boff
* Teólogo e escritor. Escreveu com Rose Marie Muraro “Feminino & Masculino : uma nova consciência para o encontro das diferenças”. Record, 2010.
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