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“No horizonte da crise dos abusos sexuais, podem ser intuídas enormes consequências de longo prazo para o papel e a vida da Igreja: o efeito da cultura da transparência e da responsabilidade sobre a religião organizada; a capacidade da Igreja de gerir a psicologia da indignação desafogada nas mídias sociais; uma epocal renegociação das relações entre Igreja e Estado.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, publicada por L’Huffington Post, 25-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
O escândalo dos abusos sexuais na Igreja Católica
- é um capítulo na história dos desafios
- trazidos pela modernidade ao fenômeno religioso institucionalmente organizado.
De fato, no horizonte da crise dos abusos sexuais, podem ser intuídas enormes consequências de longo prazo para o papel e a vida da Igreja:
- o efeito da cultura da transparência e da responsabilidade sobre a religião organizada;
- a capacidade da Igreja de gerir a psicologia da indignação desafogada nas mídias sociais;
- uma epocal renegociação das relações entre Igreja e Estado.
Na história dos abusos sexuais na Igreja Católica, a cúpula no Vaticano de fevereiro de 2019 é um momento importante.
Se a história da sex abuse crisis (crise do abuso sexual – NdR) na Igreja Católica como crise global ainda deve ser escrita,
- o Papa Francisco inaugurou uma nova fase,
- aberta não apenas por causa dos novos desdobramentos da crise global entre 2017 e 2018 (em particular na Austrália, no Chile e nos Estados Unidos),
- mas também devido a uma abordagem diferente para a questão do governo da Igreja por parte do jesuíta Bergoglio.
♣ Antes de mais nada, o pontificado de Francisco coincide com
- a explosão da crise no centro do governo da Igreja com o caso do ex-cardeal McCarrick
- e a tentativa de golpe de Viganò.
Francisco reagiu levando a crise ao Vaticano, que decidiu convocar uma cúpula sem precedentes.
Isso significou uma mudança de significado:
- Roma não é mais o centro de comunicação às periferias de decisões tomadas de cima ou a sede para encontros bilaterais (como João Paulo II com os cardeais dos EUA em 2002),
- mas é um dos lugares para o amadurecimento de decisões importantes para a vida da Igreja.
Aqui está a convergência entre a percepção de Francisco sobre o catolicismo como comunhão plenamente global e a eclesiologia da sinodalidade pós-Vaticano II:
- todos os países do mundo estavam representados na reunião dos dias 21 a 24 de fevereiro;
- todas as áreas do mundo estavam representadas por oradores convidados para falar;
- uma contribuição essencial para a conferência veio das mulheres
- convidadas para falar ao lado e no mesmo título dos cardeais.
♣ Segundo: a eclesiologia da sinodalidade é relevante para compreender o modo pelo qual Francisco pretende gerir a crise dos abusos como crise global. A crise revelou a insustentabilidade de um modelo eclesiológico que, no segundo período pós-Vaticano II (entre João Paulo II e Bento XVI), frustrara o papel teológico das Igrejas locais e nacionais. Nesse sentido, a ação de Francisco também une aos impulsos necessários do centro (da criação da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores em 2014 até a cúpula de fevereiro de 2019) uma nova abertura de espaços para a colegialidade e a sinodalidade das Igrejas locais.
Essa é uma abordagem que reflete a necessidade de criar relações de tipo novo entre o nível central-universal e o nível local no catolicismo romano. Vale a pena lembrar que, antes da eleição do Papa Francisco, no Vaticano e nos altos níveis da hierarquia católica mundial, quase ninguém falava da colegialidade e da sinodalidade da Igreja como dimensões necessárias para combater o clericalismo, causa principal do escândalo.
♣ Terceiro: uma Igreja católica sinodal precisa de discernimento e, portanto, também precisa de espaços e de tempos para uma conversa eclesial que deve preceder qualquer decisão. Esse evento no Vaticano tentou encontrar um equilíbrio entre transparência e acessibilidade através da mídia, por um lado e, por outro, a exigência de criar um clima de discernimento reservado aos participantes.
A escolha de “proteger” o evento do exterior também era motivada por razões de segurança, em um encontro realizado simbólica e materialmente em um clima de assédio por parte das organizações de vítimas e sobreviventes de abusos sexuais. Mas também se deveu à escolha de fazer da cúpula um evento espiritual, e não apenas um evento midiático.
As liturgias do sábado e do domingo foram preparadas de maneira diferente de outros modelos e, em particular, dos de João Paulo II – por exemplo, a solene e pública liturgia de 12 de março de 2000 na Basílica de São Pedro, durante o Grande Jubileu.
♣ Quarto: uma Igreja sinodal está aberta a diversos tipos de contribuições provenientes do mundo exterior. Isso era muito visível nas fontes e organizações citadas pelo Papa Francisco no seu discurso final: Organização Mundial da Saúde, Unicef, Interpol, Europol etc. Um papel especial durante a cúpula foi dado à mídia e aos jornalistas, atores-chave na história da crise dos abusos sexuais na Igreja. Tratou-se, por parte da estratégia vaticana, de uma captatio benevolentiae e também da reparação de uma história – eram os anos de João Paulo II – de jornalistas insultados e difamados por terem investigado os padres pedófilos.
Por outro lado, a cúpula pôs em cena a versão simplificada (as hierarquias eclesiásticas, as vítimas e a mídia) de uma situação muito mais complexa. A cúpula vaticana não incluía outros atores-chave para compreender a complexidade da crise dos abusos: representantes da polícia, advogados, seguradoras e, sobretudo, procuradores gerais e promotores públicos que trabalham pela justiça secular – para silenciar o impacto das mídias sociais.
♣ Quinto: Igreja sinodal significa Igreja aberta à mudança que não é somente estrutural, mas também teológica.
- A cúpula no Vaticano esclareceu o quanto a Igreja precisa de mulheres que sejam vozes presentes e ativas nos órgãos de governo da Igreja.
- O Papa Francisco usa uma linguagem típica da sua geração para se dirigir às mulheres, que soa inadequada aos ouvidos de muitos. Mas é inegável que, durante este pontificado, foram dados passos à frente nesse sentido.
No entanto, o espectro das questões de longo prazo é muito mais amplo. Os abusos sexuais
- são um problema não só das Igrejas ocidentais que enfrentam uma crise de civilização que tem em seu centro a questão sexual e biopolítica.
- É um problema global e hoje mais grave naqueles países onde ele foi subestimado até agora (incluindo a Itália).
Não se trata apenas de reprimir um fenômeno criminoso, mas também de uma questão teológica:
- da teologia dos sacramentos (especialmente a ordenação ao sacerdócio) aos modelos eclesiológicos;
- do papel das mulheres na Igreja ao magistério do último século sobre a moral sexual.
A questão mais complicada diz respeito
- às reformas estruturais exigidas por uma cultura do sacerdócio e do episcopado
- que muitas vezes significam honras,
- mas sem as responsabilidades que delas derivam.
O espectro das questões a serem abordadas é amplo: nesse sentido, o pedido de “tolerância zero” pode se tornar um slogan que não ajuda a compreender a vastidão dos problemas. Para fazer uma comparação,
- o Concílio de Trento, no século XVI, não respondeu à Reforma Protestante
- apenas com um programa anticorrupção,
- mas também com uma reavaliação de algumas categorias teológicas.
Esse é um trabalho que, para a Igreja, ainda está no início e não só por culpa do Vaticano ou das hierarquias eclesiásticas. O escândalo abalou Igrejas em países distantes de Roma: geográfica e culturalmente distantes (especialmente a Austrália e os EUA), onde a teologia é vital, mas, nas últimas décadas, teve pouco impacto sobre a elaboração de políticas doutrinais e o magistério da Igreja.
Com Francisco, o papado deu passos importantes na história da luta contra os abusos sexuais de menores.
Mas é uma crise que, nos últimos meses, se ampliou
- para outros tipos de vítimas
- (as freiras, os seminaristas)
- e de culpados (bispos e cardeais).
Na Igreja global, nessa comunhão global totalmente feita de periferias, ainda há muitas esquinas para virar.
Massimo Faggioli
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