Jacques Távora Alfonsin – 16 Fevereiro 2019
Foto: Charge sobre a obra de Michelangelo: A Criaçã0 – controlacrisi.org / imgur.com
Eis o artigo.
O senador Luis Carlos Heinze publicou um artigo na Zero Hora de 14 deste fevereiro, sob ao título de “Que a demagogia fique no passado”. Ele saúda com muito entusiasmo os rumos da política econômica do novo poder executivo do país. Afirmando que
“os brasileiros rechaçaram de vez as políticas assistencialistas e distributivas das recentes décadas”, dá como erradas essas e como certa a do poder recentemente empossado.
Luis Carlos Heinze com Bolsonaro / osul.com.br
O juízo sobre o certo e o errado, como sempre, é sabidamente perigoso,
- mais ainda quando publicado na forma de um decreto,
- de um senador historicamente identificado com uma ferrenha oposição às políticas sociais,
- integrante de uma bancada ruralista fiel escudeira do chamado livre (?) mercado,
- proprietária da maior parte do território do país,
com um tal poder de mando que
- não só impede o acesso à terra de quem a isso tem direito constitucionalmente garantido,
- defende e consegue até a disseminação de veneno sobre ela,
- compromete o meio-ambiente,
- briga com quilombolas e índias/os,
- enche as estatísticas anuais da CPT com mortes de lideranças das organizações camponesas,
- como se as posses seculares dessa multidão toda devam ser forçadas a ceder aos seus próprios interesses.
Mesmo que se desse de barato, então, a procedência do seu juízo sobre o que é certo ou errado, esse não encontraria no horizonte do artigo assinado pelo senador
- alguma prova, por mínima que seja,
- de que o modelo econômico de convivência humana por ele dado como certo,
- já deu certo, dá certo, há de ser o certo.
em essa demonstração, que certamente mostraria o contrário do que ele diz, pelo menos para a grande maioria do povo pobre de todo o mundo – tantas são as provas do que o livre mercado já sacrificou de vidas no passado – o seu juízo acaba incorrendo no próprio defeito que ele acusa ter existido nas políticas anteriores.
Pois existe até mentira no seu plano:
- em vez de permitirem o desenvolvimento dos mais pobres,
- acabaram por empobrecer a todos.”
O programa fome zero, lá desenvolvido, por mais desvirtuado que possa ter sido depois, retirou o Brasil do mapa da fome, uma inédita conquista brasileira, agora sob risco de, sob o domínio do modelo econômico “certo” segundo o senador, voltar a nos assombrar…
É demagogia irresponsável, também, das mais rasteiras, o que ele diz sobre os candidatos eleitos, estarem afinados com as suas posturas,
“dispostos a atuar nas pautas prioritárias para a população: combate à corrupção e ao crime”.
Desça o senador um olhar, mesmo despido de maior atenção,
- para o próprio presidente,
- para o seu ministério
e consiga separar quantos ali estão isentos de
- inquéritos policiais,
- denúncias criminais,
- suspeitas fundadas de ilícitos de todo o tipo já praticados, sob investigação.
É só porque fazem parte da elite rica do país, em quase toda a totalidade, que passaram a ser exemplos de virtude e honestidade?
A resposta é dada por um eloquente sim para quem adora o deus mercado. O senador revela ser um dos seus sacerdotes.
- O seu deus é um deus que impõe e justifica toda e qualquer iniciativa própria como manifestação de liberdade, mesmo sob a irresponsabilidade com que acusa quem se lhe opõe.
- O seu templo é o interesse próprio,
- seu altar o dinheiro,
- sua prece o lucro,
- sua liturgia a manipulação “legal” do Poder Público.
É um deus
- implacável,
- indiferente com a pobreza e a miséria que deixa no seu caminho.
- Não perdoa, não se compadece com a fraqueza de quem não alcança seguir o seu ritmo de dominação e exploração sobre pessoas e bens.
- Seus olhos são os do cifrão.
- A vida alheia somente lhe interessa se e quando possa lhe oferecer renda.
Em matéria de distribuição de renda, aliás,
- sabidamente uma das condições essenciais ao reconhecimento de uma economia realmente democrática,
- não se encontra no artigo do senador onde o seu modelo político-econômico demonstrou força e poder para ela.
Talvez ele fosse forçado a reconhecer, então, que o seu modelo não é capaz de garantir minimamente esse sonhado anelo da humanidade.
- Essa infelicidade é lamentada por alguém que o senador jamais poderá acusar de comunista ou socialista,
- do modo como acontece geralmente quando alguém foge para a ideologia,
- quando não dispõe de provas para sustentar o que diz.
<–(Foto: Charlie Rose) Foto: Estante Virtual
John Kenneth Galbraith, um economista e filósofo amigo de John Kennedy, professor na Universidade Harward, que chegou a ser embaixador dos Estados Unidos na Índia, é autor do livro “A sociedade justa. Uma perspectiva humana”, obra traduzida e publicada no Brasil em 1996 pela editora Campus. Escalona as preocupações privadas e públicas indispensáveis às garantias devidas a uma sociedade justa, sendo notável a primeira delas:
- “Primeiro, existe o fato inevitável de que a moderna economia de mercado (na terminologia agora aprovada), concede a riqueza e distribui a renda
- de uma forma altamente desigual, socialmente adversa e também funcionalmente prejudicial.” (pág. 68).
- “Como observado, a alta gerência da empresa moderna está comprometida, em toda doutrina econômica ortodoxa, com a maximização do lucro.
- Por estar isenta em um grau substancial do controle ou de restrições dos acionistas, ela maximiza em alto grau o retorno em benefício próprio.
Com diretorias coniventes selecionadas por si própria, ela efetivamente
- fixa os próprios salários,
- determina suas próprias opções de compras de ações
- e estabelece generosamente o valor de suas eventuais indenizações.
Que tal retorno não se relaciona de nenhuma forma plausível com a função social ou econômica é amplamente aceito.” (pág.70).
Bem analisada esta lição,
- mesmo sem fazer referência direta a qualquer princípio ético,
- é impossível deixar-se de notar o grau de corrupção interno e externo do qual está viciada a economia de mercado.
Chega a ser ousada a lembrança que Galbraith faz da função social da economia. Soa menos como pecado e mais como heresia para o deus mercado. Desde que ela apareça só na lei, como acontece quase sempre, sem nenhum efeito prático, para esse deus até é melhor. Deixa-lhe o caminho livre para transferir toda a sua responsabilidade para o Estado.
O senador Luis Carlos Heinze, como toda a bancada ruralista que ele integra,
- certamente vai rechaçar esse ensinamento,
- preferindo seguir missionário do mercado que o seu artigo revela como superior, indiscutível.
- Vai continuar adorando o deus que o seu artigo revela digno de ser adorado.
Assim, como muitos deuses do passado,
- exigindo sacrifícios humanos,
- uma economia ferreamente devota do aumento da riqueza de poucas/os e da pobreza e miséria de muitas/os.
Cabe, como sempre deve-se insistir,
- defender os direitos humanos fundamentais sociais
- vítimas desse deus contra aquele tipo de opinião,
- não com o desrespeito e a irresponsabilidade visíveis que ela guarda com o passado, o presente e o futuro do país,
- mas sim com a serena e decidida ação de tornar públicas as suas vergonhas.
Essas, sempre muito habilmente escondidas, se forem colocadas nuas à luz do dia deixarão claro o que realmente são. Uma forma solerte de enganar, ludibriar, enfraquecer e assim dominar as suas vítimas.
Jacques Távora Alfonsin
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul (Aposentado). Mestre em Direito pela Unisinos. Professor de Direito Civil da Unisinos.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/586718-o-certo-e-o-errado-segundo-um-sacerdote-do-deus-mercado
.
Leia mais:
- O agro é lobby: a bancada ruralista no congresso
- O sistema das Sesmarias permanece no Brasil moderno. Entrevista especial com Katia Maia
- “Cardápio” da bancada ruralista traz venda de terras a estrangeiros como prioridade
- “A verdadeira corrupção é a do mercado”, diz Jessé Souza
- “A corrupção número um, feita pelo sistema financeiro, está incólume. Entrevista especial com Guilherme Delgado
- Uma nova ideia de economia de mercado. Artigo de Stefano Zamagni
- O vínculo já rompido entre a democracia e a economia de mercado. Artigo de Slavoj Žižek
- Uma economia que mata
- A religião popular: única esperança contra o domínio do deus Mercado. Entrevista com Harvey Cox
- ‘Estamos caminhando com muita indignidade pra voltar ao Mapa da Fome’
- Conflitos no Campo Brasil 2017: massacres e pedagogia do terror
- A natureza não é responsável por desastres tidos como “naturais”
Leave a Reply