“O que devo fazer para melhorar o mundo?”,
perguntou um professor no encontro do Papa com alunos e professores de escolas jesuítas (7 de junho de 2013, no Vaticano).
“Dedica-te à política”, respondeu-lhe o Papa
1. Quando, na mensagem para o Dia Mundial da Paz (1 de Janeiro), regista dez “vícios” no exercício político, que diz serem “a vergonha da vida pública”, o Papa Francisco reassume a prioridade da reabilitação da política. Francisco teme o enfraquecimento do “ideal duma vida democrática autêntica” e sintetiza os perigos para a paz social, ou seja, para a democracia:
- “a corrupção – nas suas múltiplas formas de apropriação indevida dos bens públicos ou de instrumentalização das pessoas –,
- a negação do direito,
- a falta de respeito pelas regras comunitárias,
- o enriquecimento ilegal,
- a justificação do poder pela força ou com o pretexto arbitrário da “razão de Estado”,
- a tendência a perpetuar-se no poder,
- a xenofobia e o racismo,
- a recusa a cuidar da Terra,
- a exploração ilimitada dos recursos naturais em razão do lucro imediato,
- o desprezo daqueles que foram forçados ao exílio” (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2019).
Se economia e finanças continuam a (co)mandar, ampliando bolsas de pobreza, descontentamento e exclusão – “esta economia mata”, diz o Papa na Exortação Evangelli Gaudium–, há uma cada vez maior influência cultural sobre os decisores, construtora de segregação e beligerância, a exacerbar o medo do diferente e da diferença.
No discurso ao corpo diplomático, dia 7 de janeiro, Francisco ampliou a análise e alertou para o “ressurgimento de tendências nacionalistas”,
- comparando o tempo presente com o tempo entre as duas grandes guerras do século XX,
- quando uma Liga das Nações não impediu a deriva populista e anti-sistema
- que promove os medos e vê a diversidade como um risco.
Elogiando as diferenças, o Papa sublinha os riscos para a democracia provocados pelas “colonizações ideológicas, culturais e económicas”, que coarctam a liberdade. Na mensagem de Natal disse que “as diferenças não constituem um dano nem um perigo, são uma riqueza”, uma “mais-valia”(Mensagem Urbi et Orbi, 25 de Dezembro de 2018).
A organização social em livre pensamento
- constrói ideias,
- vive no percurso de uma história de ideias,
- de busca e interpelação de arquétipos.
Impor um pragmatismo controlador, qualquer que ele seja, é um retrocesso. As ideologias compõem também a teia plural com que se tece o exercício político. Mas,
- a par do aparente crescimento da indiferença em relação às regras de participação democrática, como o ato de votar,
- constata-se o renascimento de narrativas messiânicas contra as diferenças, as ideias e a ideologia, acentuando os desequilíbrios.
O que tem a religião a ver com isto? Basta ver como (a)s palavra(s) religiosa(s) e as ideias por ela produzidas vão sustentando
- emergentes correntes populistas
- e novos pólos de pertença desinstitucionalizada,
- não sintonizados com os modelos clássicos de “esquerda” e “direita”e com princípios da democracia.
Também os livros sagrados desenham contornos políticos de convivência, desenvolvem ideias que, por sua vez, podem sustentar ideologias. Mas,
- como a imposição de ideologias sobre a liberdade individual é a negação do próprio exercício político,
- recorrer às narrativas do sagrado para contrariar ideias e diabolizar ideologias
- é um negro paradoxo já experimentado.
2. Necessitaremos de outro modelo de participação que renove o exercício político?
Recordemos as primeiras semanas do pontificado, quando o Papa Francisco recebeu na Praça de São Pedro, a 18 de maio de 2013, representantes de movimentos da Igreja, alguns conotados com gente ligada a jogos de influência na alta finança e na política. Ali mesmo, sem meias palavras, pôs álcool na ferida:
- “Se os investimentos nos bancos caem um pouco… tragédia, como se faz?
- Mas se morrem pessoas à fome, se não têm o que comer, se não têm saúde, nada se faz”.
- A pobreza, acrescentou, “não é uma categoria sociológica, filosófica ou cultural”, mas um facto relacional, de (ir)responsabilidade na gestão ética do bem comum.
Olhar a vida a partir da experiência dos que menos têm, no sentido material e existencial, abre outro horizonte de leitura da realidade. As estatísticas têm revelado melhorias sociais após a recente crise, mas, segundo o Instituto Nacional de Estatística, um em cada cinco portugueses tem ainda rendimentos inferiores a 454 euros, considerado o limiar da pobreza. E um em cada dez trabalhadores portugueses é pobre.
Calçar os sapatos do outro é a metáfora da atitude. A pobreza não tem apenas uma forma de se dizer, nem uma causa única, e a experiência da pobreza em Portugal não corresponde à de outras latitudes. Mas
- a pobreza não resulta apenas da falta de bens essenciais – há excessos de produção e consequentes desperdícios, com graves e irreversíveis consequências ecológicas –
- é, acima de tudo, o resultado de uma distribuição injusta e desequilibrada,
pelo que a resposta passa por
- dar prioridade ao combate às desigualdades,
- atenuando as múltiplas e por vezes insondáveis causas,
- que vão das políticas remuneratórias à forma como se pensa socialmente uma cidade.
No combate à pobreza há vários patamares de urgência e emergência.
- E se num primeiro momento, perante as circunstâncias, a assistência é inevitável,
- posteriormente esta pode não ser libertadora e pode até vir a tornar-se perversa.
Cada caso é um caso, mas seguir a mera lógica de distribuição dos excessos, ou seja, das sobras, apenas perpetua as circunstâncias da fragilidade.
Pelo impulso da doutrina social católica em relação ao destino dos bens, o sociólogo Alfredo Bruto da Costa trabalhou a ideia segundo a qual o que nos sobra não nos pertence, apenas o gerimos.
O desafio é mais ambicioso, humana e eticamente:
- atuar a montante, na pedagogia para a produção e o consumo,
- produzir na medida justa e ecologicamente adequada
- e distribuir adequadamente os recursos pela justa medida.
Na equação do evangelho, “dividir para multiplicar, somar sem subtrair nada a ninguém”(Frei Fernando Ventura, Somos Pobres mas Somos Muitos, 2013). É também um desafio político no sentido mais nobre do termo e que nos transporta para a corresponsabilidade na gestão da polis.
3. “O que devo fazer para melhorar o mundo?”, perguntou um professor no encontro do Papa com alunos e professores de escolas jesuítas (7 de junho de 2013, no Vaticano). “Dedica-te à política”, respondeu-lhe o Papa, que enquadra o exercício político na encíclica Laudato Si:
“Devemos implicar-nos na política, porque a política é uma das formas mais elevadas da caridade, visto que procura o bem comum”; “Compete à política e às várias associações um esforço de formação das consciências da população. Todas as comunidades cristãs têm um papel importante a desempenhar nesta educação (…) para uma austeridade responsável, a grata contemplação do mundo, o cuidado da fragilidade dos pobres e do meio ambiente”; “Tendo em conta o muito que está em jogo, do mesmo modo que são necessárias instituições dotadas de poder para punir os danos ambientais, também nós precisamos de nos controlar e educar uns aos outros” (Encíclica Laudato Si, 24 deMaio de 2015).
A nova cidadania, propõe o Papa Francisco,
- é a que segue o paradigma de um “amor civil e político”, com “pequenos gestos de cuidado mútuo,
- manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor”,
- contrariando a submissão do exercício político à economia e da economia aos “ditames” da tecnocracia refém de uma redutora visão de lucro que concentra em poucos o que é de e para todos.
Este “amor à sociedade” passa, na perspetiva de Bergoglio, por um exercício político em subsidiariedade, escrutinado na promoção de parcerias que não perdem o azimute de um “compromisso pelo bem comum”.
Estamos diante de um evidente apelo à reabilitação da política, (re)pensando a Comunidade, na qual as instituições sociais de várias origens e objetos, atuantes na proximidade e conhecedoras privilegiadas do pulsar humano, têm um papel fundamental.
Contribuir para a justiça e o bem comum
- impõe ter vistas largas e disponibilidade para um debate político que não se esgota na realidade partidária,
- mas com esta se faz em mútuo espírito de serviço,
- valorizando redes de ação e corresponsabilidade.
E se, de um lado ou de outro, há o risco de “sujar as mãos”, que esta contingência não bloqueie o propósito maior. Faz parte desta relação contornar os obstáculos e encontrar as vias de equilíbrio entre as ideias e as possibilidades, a ideologia e a realidade, a vontade e a cultura. Os grandes sonhos de mudança não se concretizam contra, mas a favor.
JOAQUIM FRANCO
nasceu em Lisboa, em 1967. Casado, tem dois filhos. É investigador em Ciência das Religiões na ULHT, fundador do Observatório para a Liberdade Religiosa, autor e coautor de diversas publicações – entre as quais, Do eu solitário ao nós solidário (Verso de Kapa), Somos pobres mas somos muitos (Verso de Kapa) e Leitura (im)possível de uma visita (Ed. Lusófonas
Fonte: http://setemargens.com/o-papa-francisco-a-politica-e-a-corresponsabilidade/
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