Donatella di Cesare – 09 Janeiro 2019
“Aos olhos de Bauman, a ideologia neoliberal desempenha um papel decisivo na sociedade líquida, porque contribui para tornar tudo precário e instável, seja promovendo a ‘desregulamentação’ da economia de mercado, seja favorecendo a liberdade individual abstrata ou, melhor, um individualismo separado do corpo político.
Sociedade líquida significa falta de vínculos, precarização, multiplicação dos medos.”
A opinião é da filósofa italiana Donatella Di Cesare, professora da Universidade de Roma La Sapienza, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 07-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto..
Eis o texto.
A emancipação desejada pela filosofia das Luzes foi desatendida, traída. Levaram a melhor o culto da ciência e a exploração da natureza em detrimento da humanidade ética, política e estética – Donatella Di Cesare – Tweet
O antitotalitarismo radical de Zygmunt Bauman nunca se traduziu na renúncia à herança marxista. Pelo contrário, a dissidência na Polônia foi a sua alavanca para reler o socialismo em chave humanista e ética. Daí aquela sua crítica social que investe contra o sistema capitalista.
Bauman consegue manter firme o olhar da suspeita.
- Dissidente a Leste,
- anticapitalista a Oeste
- – certamente não por oportunismo.
Se observarmos atentamente, a restrição da liberdade, mesmo em formas mais latentes e dissimuladas, também emerge nos países ocidentais.
Bauman dá então mais um passo e, tanto a Leste quanto a Oeste, põe sob acusação todo o projeto da modernidade que promoveu e favoreceu a regulação preditiva e racional do mundo. Em suma: ambições totalizantes são inerentes à modernidade.
- Criadora da ordem,
- destruidora da anomalia,
- a modernidade traz em si, como resultado extremo, resultado final e paroxístico, o totalitarismo.
O projeto moderno renegou a vocação emancipadora, reduzindo-se a um instrumento de domínio – Donatella Di Cesare – Tweet
No seu decisivo antimodernismo, desenvolvido especialmente nos anos 1980, Bauman retoma o ensinamento da Escola de Frankfurt, as ideias de Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm. Isso explica por que ele
- não recua
- e não cai em uma posição reacionária.
O nó a ser desfeito é a “dialética do Iluminismo”. A emancipação desejada pela filosofia dasLuzes foi desatendida, traída. Levaram a melhor
- o culto da ciência
- e a exploração da natureza
- em detrimento da humanidade ética, política e estética.
O projeto moderno renegou a vocação emancipadora, reduzindo-se a um instrumento de domínio. Para Adorno e Horkheimer, a causa deve ser buscada na autodestrutividade da razão; para Bauman na ambição totalizante da modernidade, no planejamento racional.
É no Estado, divindade tutelar, em que se centram os meios para organizar e regular a vida, que a modernidade encontra a sua expressão mais adequada – Donatella Di Cesare – Tweet
É no Estado, divindade tutelar, em que se centram os meios para organizar e regular a vida, que a modernidade encontra a sua expressão mais adequada. Bauman indica aqui a afirmação da segurança em detrimento da liberdade. O Estado, arquiteto do real, que define a coletividade, limita-a às suas normas e, portanto, é sempre potencialmente totalitário. A sua função consiste cada vez mais em separar
- o útil do inútil,
- aqueles que estão destinados a viver e prosperar
- daqueles que, nocivos e patológicos, devem ser eliminados.
A Shoá, examinada de acordo com Hannah Arendt, nas suas estruturas técnicas e burocráticas, é fenômeno moderno por excelência, capaz de trazer à tona, retrospectivamente, o perigo inerente à modernidade.
O potencial totalitário permanece hoje. Só que se articula de forma diferente
- na cultura de massa,
- no sistema midiático,
- no desenfreado consumismo das sociedades liberais,
- que contribuem não com a libertação, mas sim com a alienação do indivíduo.
Atento às formas daquilo que Michel Foucault chama de “micropoder”, sem por isso subestimar a dimensão disciplinar que limita a espontaneidade, Bauman consegue ligar
- a crítica da modernidade
- com a crítica do universo pós-moderno.
Basta não deixar fugir aquele totalitarismo invertido que opera às escondidas, mas de modo não menos eficaz, graças à sua capacidade de fragmentar e atomizar.
A Shoá, examinada de acordo com Hannah Arendt, nas suas estruturas técnicas e burocráticas, é fenômeno moderno por excelência, capaz de trazer à tona, retrospectivamente, o perigo inerente à modernidade – Donatella Di Cesare – Tweet
No fim dos anos 1990, Bauman chega a uma fórmula teórica tirada, como ele mesmo admite várias vezes, de uma metáfora: “Modernidade líquida”. A fórmula está destinada a um enorme sucesso. A liquidez eleva-se
- como selo da época atual,
- incerta, flexível, vulnerável.
- Tudo é possível – nada parece realmente realizável.
Tendo surgido pela primeira vez em alguns ensaios, a fórmula torna-se o tema da sua obra mais importante, Liquid Modernity, publicada no ano 2000. A liquidez ou fluidez é outro nome para designar um novo capítulo na história moderna, um capítulo que Bauman prefere não chamar de “pós-moderno”. Esse termo poderia ser enganoso, dando a entender que a modernidade acabou.
Bauman, em vez disso, aponta para a continuidade: o “pós-moderno”
- não anuncia o fim da modernidade,
- mas sim a sua continuação por outros meios.
Precisamente por exigências de clareza, ele recorre à metáfora dos sólidos que se tornaram líquidos. Portanto, a continuidade não é apenas cronológica. Reivindicações e motivos da modernidade continuam operando na situação pós-moderna. Mas
- a modernidade não pode esconder que não cumpriu as promessas
- e, por isso, revela-se uma “modernidade sem ilusões”.
- Isto é, uma modernidade fraca, incapaz de realizar plenamente a sua vocação ordenadora
- e, portanto, mostra uma característica negativa.
Mais do que pós-modernidade, então, se deveria falar de modernidade negativa.
Mas a metáfora da liquidez tem muitas vantagens interpretativas. “Sólido” e “líquido” são os adjetivos que indicam duas épocas distintas, mas contíguas.
- Sólida é a sociedade baseada na produção, em que os eixos da organização comum são firmes;
- líquida é a sociedade de consumo, em que esses eixos vão aos pedaços, em que tudo derrete, se liquefaz.
Aqui está o grande mérito de Bauman: em ter esclarecido a passagem
- da “sociedade dos produtores”, que confere aos próprios membros um papel definido,
- à “sociedade dos consumidores”, que torna a participação vaga e incerta, e o pertencimento, fluido e mutável.
Se
- a primeira se caracteriza por instituições estáveis e “sólidas”, que permitem aos indivíduos articular e estruturar a própria existência política,
- a segunda se caracteriza por contextos “fluidos”, marcos nuançados.
No entanto, a fluidez não deve levar ao engano. O risco totalitário permanece latente, exceto que se manifesta sob novos aspectos. Na verdade, a liquidez nada mais é do que
- o resultado extremo e paradoxal da modernização,
- daquela obsessão pela rigidez,
- daquela realização técnica da vida, que acabou se invertendo no oposto, dando origem a uma “liquefação”, sem por isso deixar de ser totalizante.
A liquidez nada mais é do que o resultado extremo e paradoxal da modernização, daquela obsessão pela rigidez, daquela realização técnica da vida, que acabou se invertendo no oposto, dando origem a uma “liquefação”, sem por isso deixar de ser totalizante – Donatella Di Cesare – Tweet
A transição para a “fase líquida”, embora possa ocorrer em tempos diferentes, parece ser um fenômeno planetário. É a passagem de estruturas velhas e desgastadas, de ordenamentos podres e friáveis, a uma vida líquida, informe, provisória, privatizada.
Não se captaria a sua profundidade se esta não fosse lida contra o pano de fundo do neoliberalismo. Talvez aqui deva ser percebida a novidade introduzida pela interpretação de Bauman. Aos seus olhos,
- a ideologia neoliberal desempenha um papel decisivo na sociedade líquida,
- porque contribui para tornar tudo precário e instável,
- seja promovendo a “desregulamentação” da economia de mercado,
- seja favorecendo a liberdade individual abstrata
- ou, melhor, um individualismo separado do corpo político.
Sociedade líquida significa falta de vínculos, precarização, multiplicação dos medos.
Qual melhor maneira para administrar o poder? Cumpre-se, então, a passagem do “Estado social” para o “Estado penal”, cuja função repressiva pode ser exercida sem demasiada resistência.
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