Valesca de Morais do Monte / Leomar Daroncho
Plantação no Paraná. JONAS OLIVEIRA – FOTOS PÚBLICAS
O chamado PL do Veneno, que fragiliza o processo de registro e de controle do veneno agrícola, pode comprometer a posição brasileira na disputa por mercados
O maior acidente da indústria química mundial completa 34 anos. A explosão da fábrica de agrotóxicos de Bhopal, Índia, em 3 de dezembro de 1984, deixou milhares de vítimas. O que sabemos, hoje, sobre
- a relação entre a exposição ao veneno agrícola
- e os danos à saúde?
Há robustos estudos que apontam a correlação entre os agrotóxicos e doenças crônicas, como câncer, ou malformações em crianças, além de situações em que há indicativos dessa correlação, como é o caso
- do autismo,
- do mal de Parkinson
- e da espinha bífida.
Todavia, passemos à análise do problema sob a ótica da ameaça à soberania econômica nacional.
O constituinte elegeu
- uma ordem econômica de base capitalista,
- optando por um modelo de capitalismo nacional autônomo.
A soberania econômica inclui a prerrogativa de dispor
- dos recursos naturais,
- da produção,
- da tecnologia
- e da capacidade de competir no mercado mundial.
O Brasil, importante produtor de commodities agrícolas,
- é o maior importador de veneno
- e admite o uso de mais de 500 tipos de agrotóxicos,
- 30% deles proibidos na União Europeia.
Entre os venenos agrícolas mais vendidos aqui, ao menos 14 estão proibidos no mundo em razão de comprovados danos à saúde.
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável tem entre suas metas e objetivos
- garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos
- e implementar práticas agrícolas que aumentem a produtividade e a produção, sem descuidar de manter os ecossistemas e a capacidade de adaptação às mudança do clima, melhorando progressivamente a qualidade de vida na terra.
No jogo do comércio internacional, frequentemente os interesses econômicos são defendidos por salvaguardas. Não é raro que
- essas medidas se materializem em barreiras técnico-sanitárias
- que dificultam a entrada de produtos em desacordo às normas sanitárias vigentes no mercado interno de destino,
- em sintonia com a diretriz de preservação da saúde pública.
Em 2012, autoridades de saúde americanas foram comunicadas que havia sido detectado o pesticida carbendazin no suco de laranja brasileiro.
- Apesar de permitido no Brasil,
- o veneno não era autorizado nos Estados Unidos.
- A ameaça de devolução do carregamento abalou o mercado mundial do suco com significativo prejuízo aos citricultores brasileiros.
Em 2017, a Associação Capixaba dos Exportadores de Pimentas e Especiarias (Acepe) alertou que
- a pimenta-do-reino, importante produto do agronegócio do Espírito Santo,
- enfrentava restrições de países da União Europeia
- em decorrência do uso indiscriminado de agrotóxicos.
A soja é o principal produto da pauta brasileira de exportações.
- Preocupada com a substância química usada na sua produção,
- a Noruega vem cobrando informações,
- auditando e visitando a cadeia produtiva.
A proteína de soja não transgênica concentrada destinada ao país nórdico recebe uma certificação de boas práticas, um selo que atesta a sustentabilidade social e ambiental. Esse é um comportamento que tende a se tornar mais frequente nos mercados seletivos e economicamente mais disputados.
Em 2017, outro importante segmento do agronegócio foi abalado por denúncias que expuseram a fragilidade do nosso controle sanitário.
A operação “Carne Fraca” levantou preocupações com
- conflitos de interesses
- e deficiências no processo de fiscalização.
Os importadores endureceram os testes e ampliaram os lotes de produtos rejeitados.
- Mais do que os prejuízos econômicos imediatos – China, Chile, Coreia do Sul e União Europeia suspenderam importações –,
- a fraude e a desconfiança em relação à fiscalização
- puseram em xeque a qualidade dos nossos produtos,
- reduzindo mercados.
É possível que
- o “PL do Veneno” (PL 6.299/2002),
- que concentra a competência de registro, normatização e reavaliação de agrotóxicos no Ministério da Agricultura,
- volte à ordem do dia.
Conforme alertado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), a irrefletida adoção desse caminho
- afrontaria tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil,
- em especial as Convenções nº 155 e nº 170 da OIT,
- que dispõem sobre a prevenção dos acidentes e danos à saúde ocasionados pela exposição a pesticidas.
Os riscos de
- afrontar tratados internacionais
- e reduzir a participação dos órgãos da saúde e do meio ambiente no processo, todavia,
- vão muito além da preocupação com a saúde de trabalhadores, consumidores e do meio ambiente.
A fragilização do processo de registro e de controle do veneno agrícola pode comprometer a posição brasileira na disputa por mercados. Portanto, trata-se de medida que atentaria contra o interesse dos agricultores e da soberania econômica nacional.
O MPT, instituição permanente do Estado brasileiro encarregada da defesa da ordem jurídica, inclusive da proteção à saúde e ao meio ambiente, produziu Nota Técnica a respeito do PL 6.299/2002 (disponível no site do MPT) em que enumera razões para a rejeição da proposta:
- a violação a normas internacionais ratificadas pelo Brasil;
- a afronta a direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana;
- a existência de riscos concretos à saúde e à segurança dos trabalhadores, entre vários outros fundamentos.
Essa manifestação do MPT decorre ainda da crescente atividade dos fóruns de combate aos impactos dos agrotóxicos e transgênicos, espaços institucionais plurais, com expressiva participação da sociedade civil, que revelam a premente necessidade de adotar medidas que visam à defesa dos direitos fundamentais,
especialmente
- o direito à vida,
- à dignidade,
- à saúde
- e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Numa perspectiva estruturante, a atuação do MPT está sintonizada com os legítimos interesses da competitividade da produção brasileira, com a consistente geração de empregos dignos e com a genuína soberania econômica nacional.
Valesca de Morais do Monte e Leomar Daroncho
são Procuradores do Trabalho.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/01/opinion/1543673424_338540.html
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