Papa Francisco – 16 Novembro 2018
Foto: Francisco chega ao Pontifício Colégio Pio Latino-americano / Vatican News
O discurso preparado para a ocasião é publicado pela Sala de Imprensa da Santa Sé, 15-11-2018. A tradução é de André Langer.
Eis o discurso do Santo Padre.
Um dos fenômenos que atualmente afeta a América Latina é a fragmentação cultural, a polarização do tecido social e a perda de raízes – Papa Francisco – Tweet
Estou feliz por poder me encontrar com vocês e participar da ação de graças pelos 160 anos de vida do Pontifício Pio Latino-americano. Agradeço ao reitor, Pe. Gilberto Freire, S.J., pelas suas palavras em nome de toda a comunidade sacerdotal e dos colaboradores leigos que tornam possível, com o seu trabalho cotidiano, a vida comunitária.
Talvez a característica mais notável deste Colégio seja seu ser latino-americano.
Francisco fala aos seminarista e padres latino-americanos em Roma / Vatican News
É um dos poucos colégios romanos cuja identidade não se refere a uma nação ou a um carisma, mas procura ser o ponto de encontro, em Roma, de nossa terra latino-americana – a Pátria Grande, como gostavam de sonhar os nossos próceres. E assim, o Colégio foi sonhado e é amado por seus bispos que dão prioridade a esta casa, oferecendo a vocês, jovens sacerdotes, a oportunidade de preparar
- uma visão,
- uma reflexão
- e uma experiência de comunhão
- expressamente “latino-americanizada”.
Na Igreja também existe a invasão das colonizações ideológicas – Papa Francisco – Tweet
Um dos fenômenos que atualmente afeta o continente é
- a fragmentação cultural,
- a polarização do tecido social
- e a perda de raízes.
Esta situação é agravada quando
- discursos que dividem são incentivados
- e propagam diferentes tipos de confronto
- e ódio contra aqueles que “não são dos nossos”,
que inclui
- a importação de modelos culturais que têm pouco ou nada a ver com a nossa história e identidade
- e que, longe de mestiçar-se em novas sínteses, como no passado,
- acabam desenraizando nossas culturas de suas tradições mais ricas e autóctones.
Novas gerações desenraizadas e fragmentadas!
A Igreja
- não é alheia à situação
- e está exposta a essa tentação;
sujeita ao mesmo ambiente
- corre o risco de ficar desorientada ao ser vítima de uma ou outra polarização ou desarraigada,
- se a sua vocação de ser ponto de encontro for esquecida [1].
Na Igreja também existe a invasão das colonizações ideológicas.
Por isso, é importante este tempo vivido em Roma e especialmente no Colégio: criar laços e alianças de amizade e fraternidade.
E isto
- não por uma declaração de princípios
- ou gestos de boa vontade,
mas porque ao longo destes anos
- possam aprender a conhecer melhor e fazer suas as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de seus irmãos;
- possam dar nomes e rosto a situações concretas vividas e enfrentadas por nossos povos
- e sentir como próprios os problemas dos outros.
Sejam capazes de transcender o que é simplesmente “paroquial” e liderar comunidades que saibam se abrir aos outros para tecer e curar a esperança – Papa Francisco – Tweet
O “Pio” pode ajudar muito a criar uma comunidade sacerdotal
- aberta,
- criativa,
- alegre e esperançosa,
se souber ajudar-se e socorrer-se, se for capaz de se enraizar na vida dos outros, irmãos filhos de uma história e patrimônio comum, parte de um mesmo presbitério e povo latino-americano.
Uma comunidade sacerdotal que descobre que
- a maior força com que conta para construir a história
- vem da solidariedade concreta entre vocês hoje,
- e continuará amanhã em suas Igrejas e povos
- a fim de serem capazes de transcender o que é simplesmente “paroquial”
- e liderar comunidades que saibam se abrir aos outros para tecer e curar a esperança (cf. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 228).
O nosso continente, marcado por velhas e novas feridas, precisa de artesãos de relações e de comunhão, abertos e confiantes na novidade que o Reino de Deus pode suscitar hoje – Papa Francisco – Tweet
O nosso continente, marcado por velhas e novas feridas, precisa de
- artesãos de relações e de comunhão,
- abertos e confiantes na novidade que o Reino de Deus pode suscitar hoje.
E isso vocês podem começar a desenvolver a partir de agora. Um sacerdote em sua paróquia, em sua diocese, pode fazer muito – e isso é bom –, mas ele também corre o risco de
- se queimar,
- isolar
- ou fechar-se sobre si mesmo.
Sentir-se parte de uma comunidade sacerdotal, na qual todos são importantes – não por ser a somatória de pessoas que vivem juntas, mas pelas relações que criam, esse sentimento parte desta comunidade –, consegue despertar e incentivar processos dinâmicos e capazes de transcender o tempo [2].
Esse sentimento de pertença e reconhecimento ajuda
- a desencadear e a estimular criativamente energias missionárias renovadas
- que promovam um humanismo evangélico capaz de se tornar inteligência e força propulsora de nosso continente. S
Sem esse sentido de pertença e de trabalho ombro a ombro, pelo contrário,
- vamos nos dispersar,
- enfraquecer
- e, o que seria pior,
- privar tantos dos nossos irmãos da força, da luz e do conforto da amizade com Jesus Cristo e de uma comunidade de fé que dê um horizonte de sentido e vida (cf. Exortação Apost. Evangelii Gaudium, 49).
E assim, aos poucos, e quase sem nos darmos conta, vamos acabar por oferecer à América Latina um
- “Deus sem Igreja,
- uma Igreja sem Cristo,
- um Cristo sem povo” (Homilia na missa em Santa Marta, 11 de novembro de 2016)
ou, se quisermos dizê-lo de outra forma, um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo… puro gnosticismo reelaborado.
Uma das características que distingue o carisma da Companhia de Jesus é a de buscar harmonizar as contradições sem cair no reducionismo – Papa Francisco – Tweet
O nosso continente conseguiu plasmar em sua tradição e em sua memória uma realidade:
- o amor a Cristo e de Cristo
- não pode se manifestar senão em paixão pela vida e pelo destino do nosso povo
- e, especialmente, em solidariedade aos mais pobres, sofredores e necessitados [3].
Isso nos recorda a importância, queridos irmãos, que,
- para ser evangelizadores com alma e de alma,
- para que a nossa vida seja fecunda e se renove com o passar do tempo,
- é necessário desenvolver o prazer de estar sempre perto da vida de nosso povo; nunca nos isolemos das pessoas.
- A vida do presbítero diocesano vive – vale a redundância – desta identificação e pertença.
A missão
- é paixão por Jesus,
- mas, ao mesmo tempo, é paixão pelo seu povo.
É aprender a olhar para onde ele olha deixar-nos comover pela mesma coisa que ele se comove:
- sentimentos entranháveis pela vida de seus irmãos,
- especialmente pelos pecadores
- e todos aqueles que andam abatidos e cansados como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9, 36).
Por favor,
- nunca se aninhem em abrigos pessoais ou comunitários
- que nos afastem dos nós onde se escreve a história.
Cativados por Jesus e membros do seu Corpo
- devemos integrar-nos plenamente na sociedade,
- compartilhando a vida com todos,
- ouvindo as suas preocupações… alegrando-nos com os que se alegram, chorando com os que choram
- e oferecendo cada Eucaristia por todos esses rostos que foram confiados a nós (cf. Exortação Apost. Evangelii Gaudium, 269-270).
Não tenham medo da santidade, não tenham medo de doar a vida pelo seu povo, alerta Francisco ao lembrar de São Oscar Romero – Papa Francisco – Tweet
Por isso, considero providencial
- unir esse aniversário à canonização de São Oscar Romero,
- ex-aluno dessa instituição e sinal vivo da fecundidade e santidade da Igreja latino-americana.
Um homem arraigado na Palavra de Deus e no coração de seu povo. Essa realidade nos permite entrar em contato com essa longa cadeia de testemunhas na qual somos convidados a criar raízes e a nos inspirar todos os dias, especialmente neste momento em que estamos “longe de casa”.
- Não tenham medo da santidade,
- não tenham medo de doar a vida pelo seu povo.
No caminho da miscigenação cultural e pastoral, não estamos órfãos; nossa Mãe nos acompanha. Ela quis mostrar-se assim, mestiça e fecunda, e assim está conosco, Mãe de ternura e força que nos resgata da paralisia ou da confusão do medo porque simplesmente está aí, é Mãe.
Não nos esqueçamos da nossa Mãe e, confiantemente, peçamos que nos ensine o caminho, que nos liberte da perversão do clericalismo, torne-nos mais e mais “pastores do povo” e não “clérigos de Estado” – Papa Francisco – Tweet
Irmãos sacerdotes: não nos esqueçamos dela e, confiantemente, peçamos
- que nos ensine o caminho,
- que nos liberte da perversão do clericalismo,
- torne-nos mais e mais “pastores do povo”
- e não “clérigos de Estado”.
Uma última palavra para a Companhia de Jesus – a presença do seu Geral e dos jesuítas que aqui estão –, que desde o início acompanha a caminhada desta casa. Obrigado pelo seu trabalho e tarefa.
Papa Francisco sendo recebido pela comunidade do Pontifício Colégio Pio Latino-americano (Foto: Vatican News)
É o que Santo Inácio queria quando pensava nos jesuítas como homens contemplativos e de ação, homens de discernimento e obediência, comprometidos com a vida do dia a dia e livres para partir – Papa Francisco – Tweet
Uma das características que distingue o carisma da Companhia é a de buscar
- harmonizar as contradições
- sem cair no reducionismo.
É o que Santo Inácio queria quando pensava nos jesuítas como
- homens contemplativos e de ação,
- homens de discernimento e obediência,
- comprometidos com a vida do dia a dia
- e livres para partir [4].
A missão que a Igreja coloca em suas mãos pede sabedoria e dedicação para que o tempo que os rapazes passarem nesta casa possam alimentar-se deste dom da Companhia,
- aprendendo a harmonizar as contradições que a vida lhes apresenta e lhes apresentará
- sem cair em reducionismos,
- ganhando em espírito de discernimento e liberdade.
Sejam mestres de grandes horizontes e, ao mesmo tempo, ensinem a cuidar dos pequenos, a abraçar os pobres, os doentes e a assumir o concreto da vida cotidiana. Non coerceri a maximo, contineri tamen a minimo divinum est (Não ser coagido pelo máximo, mas ser contido pelo mínimo, é divino – Ou: pelo sentido: é divino saber enfrentar as coisa grandes, mas, ao mesmo tempo, dar valor às pequenas NdR ) – Papa Francisco – Tweet
Ensinar a abraçar os problemas e conflitos sem medo; a lidar com o dissenso e os confrontos. Ensinar a desvendar todo tipo de discurso “correto” mas reducionista é uma tarefa crucial para aqueles que acompanham seus irmãos em formação. Ajudá-los a descobrir a arte e o gosto do discernimento como modo de proceder para encontrar, em meio às dificuldades, os caminhos do Espírito, saboreando e sentindo internamente o Deus semper maior.
Sejam
- mestres de grandes horizontes
- e, ao mesmo tempo,
- ensinem a cuidar dos pequenos, a abraçar os pobres, os doentes
- e a assumir o concreto da vida cotidiana.
Non coereceri a maximo, contineri tamen a minimo divinum est.
Novamente, obrigado por me permitirem celebrar com vocês os primeiros 160 anos de caminhada. Ao saudá-los, também quero saudar as suas comunidades, seus povos, suas famílias. E, por favor, não se esqueçam de rezar e fazer rezar por mim.
Notas:
1. Cf. São Óscar Romero, IV Carta Pastoral – Misión de la Iglesia en medio de la crisis del País (06 agosto de 1979), 23.
2. Vale a pena recordar que “Mais vale estar a dois do que sozinho. […] Se um cai, poderá ser levantado pelo companheiro. Azar, porém, de quem está sozinho: se cair, não tem ninguém para o levantar!” (Ecl 4, 9-10).
3. Cf. Guzmán Carriquiry, Recapitulando los 50 años del CELAM, en camino hacia la V Conferencia, 31.
4. Cf. J.M. Bergoglio, Meditaciones para religiosos, 93-94.
Papa Francisco
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