O Sínodo da Amazônia é considerado pela irmã Guaracema Tupinambá como “o jeito da Igreja ouvir a voz dos povos da região, os povos nativos, as populações mais vulneráveis”. Mas, além de tudo, o mais importante é desenvolver uma metodologia que leve a escutar de verdade, a “ouvir com o coração… e ouvir os clamores do povo”.
A provincial das Cônegas de Santo Agostinho, reconhece que na Amazônia a gente encontra uma “vida ameaçada em todos os sentidos”. O domínio do “mercado que transforma tudo em mercadoria e em dinheiro, sem dar oportunidade para que essas populações consigam viver da sua maneira, com seus valores, com suas culturas, com suas místicas, com sua religiosidade, com seu jeito de ser”, é nos dias de hoje um dos grandes perigos que enfrenta a região, o que tem como consequência a “violação do direito à vida”.
Nesse sentido, a religiosa reconhece que os povos amazônicos têm sido forçados a assumir “uma outra dinâmica de vida”, o que provoca que “as pessoas vão transformando seu querer, seu viver, suas expectativas, seus desejos, até o ponto de dar “valor a outras coisas”, pois esse é “o único modo que elas encontram de conviver, de ter uma possibilidade de sobrevivência dentro dessa roda-viva do capital”.
Como indígena nascida na Amazônia e que tem trabalhado pastoralmente na região ao longo de muitos anos, quando ela reflete sobre os ministérios reconhece que não se trata de levar ministérios às comunidades, e sim
“de uma troca muito respeitosa e essa troca é um processo muito lento de reflexão e de abertura de todas as partes. Se faz necessário, segundo a religiosa, “nos despir dos modelos que nós temos”, aprender com experiências que tem promovido uma convivência desde o respeito e a vontade de aprender uns com os outros. Também de chegar a todos, especialmente às ovelhas que “estão à margem do rebanho, que não foram incluídas no rebanho”.
A entrevista é de Luis Miguel Modino, publicada por CEBs do Brasil, 18-07-2018.
Eis a entrevista.
A senhora é alguém que nasceu na Amazônia e tem trabalhado muito tempo na região. Desde essa perspectiva, o que significa o Sínodo da Amazônia?
Eu não tenho muitas expectativas em relação a isso, mas eu creio que é o jeito de a Igreja
- ouvir a voz dos povos da região,
- os povos nativos, as populações mais vulneráveis,
- fazer esse eco, ressoar de um modo mais largo,
- ter mais abrangência desse eco.
Eu penso que é muito simples.
Pensa que podem se concretizar esses novos caminhos que a temática do Sínodo quer fazer realidade ou pode ficar numa coisa mais teórica?
Eu penso que depende muito da metodologia e das escutas que vai se fazer. Se as escutas
- não forem elaboradas de outras formas,
- se não forem filtradas,
- se não forem interpretadas dentro de um padrão que é o padrão que a Igreja institucional quer ouvir,
isso pode se transformar
- em novos caminhos,
- em novos horizontes para essas populações
- e para todas as pessoas que vivem aqui e são solidárias com essas populações.
Se a gente, de fato, tivesse a disposição de ouvir do jeito que se fala, do jeito que se expressa e ouvir com o coração.
Mas a Igreja está preparada para escutar e acolher aquilo que o povo fala, do jeito que o povo fala?
Eu tenho dificuldade de falar da Igreja, pois eu penso que nós
- temos a Igreja institucional, hierárquica
- e temos uma Igreja que é o Povo de Deus em marcha, a caminho,
- que marcha em diferentes ritmos, em diferentes rumos, às vezes.
Se a gente fala da Igreja institucional, hierárquica, eu acredito que há uma parte que está preparada e há uma parte que não quer ouvir.
Agora, a Igreja Povo de Deus a caminho
- que é solidária,
- que segue o Evangelho de Jesus Cristo,
- que busca os seus caminhos nos dias de hoje,
aí eu creio que é uma necessidade dos tempos de hoje a Igreja, nós como Igreja, nos fazermos ouvir e ouvir os clamores do povo.
E quais são esses clamores do povo na Amazônia?
Vida ameaçada em todos os sentidos.
- Pela sua cultura, sendo devastada,
- pelo mercado que transforma tudo em mercadoria e em dinheiro,
- sem dar oportunidade para que essas populações consigam viver da sua maneira,
- com seus valores, com suas culturas, com suas místicas, com sua religiosidade, com seu jeito de ser.
A principal violação é a violação do direito de vida e de vida em abundância, que significa
- cortar suas árvores,
- tudo para transformar em dinheiro,
- envenenar seus rios,
- acabar com as matas, com a terra,
- acabar com a possibilidade de viver num espaço que é um espaço mais largo do que uma moradia apertada numa periferia de uma grande cidade.
AMAZÔNIA – Wikipedia Commons
Infelizmente, esse pensamento também está penetrando na vida dos povos da Amazônia, que perderam valores tradicionalmente conservados e hoje assumiram valores do mundo capitalista ocidental. O que deveria ser feito por parte da Igreja, da vida religiosa, para que o povo possa retomar esses valores tradicionais e entender que isso é semente de vida plena?
Eu não diria que o povo perdeu, acho que lhes foi tirado essas possibilidades de ter uma outra dinâmica de vida, e isso vai entrando de uma forma muito sutil e as pessoas vão transformando
- seu querer, seu viver, suas expectativas, seus desejos,
- que não são seus,
- que são impostos por um modelo de exploração,
- de arrancar todas riquezas,
- de transformar todos num padrão mundial de consumo.
Eu acredito que essas populações que estão valorizando outras coisas não é nada mais do que o único modo que elas encontram de conviver, de ter uma possibilidade de sobrevivência dentro dessa roda-viva do capital.
Uma das grandes discussões que já está começando a surgir em volta do Sínodo é o tema dos ministérios, com uma cobrança para que esses ministérios sejam assumidos pelas populações locais, homens e mulheres. Realmente a senhora pensa que pode se chegar nesse ponto?
Primeiro a gente teria que refletir, discutir sobre os conceitos de ministérios.
- Se nós entendemos ministério como serviço da vida, serviço para a vida,
- nós compreenderemos que não é o sentido de levar os ministérios ou de reinterpreta-los,
- mas é no sentido de compreender quais são os ministérios existentes nessas populações
e como nós podemos compartilhar com eles os nossos ministérios e acolher deles os ministérios que existem entre eles.
Esse ministério padrão que a Igreja tem, eu acho muito complicado a gente ter uma resposta simples para achar que a gente vai encontrar de imediato alguns caminhos. Não significa
- apenas ordenar pessoas ou formar pessoas,
- porque nós temos que discutir que formação é essa,
- formação para que.
Quando a gente vai numa comunidade indígena
- que tem o pajé,
- que tem o pulaka,
- que tem seus ministros de diversas formas,
a gente se questiona o que é que nós temos que levar aos nossos ministérios, os ministérios que nós aprendemos com a Igreja ocidental.
Então, eu acredito que
- há uma necessidade de uma troca muito respeitosa
- e essa troca é um processo muito lento de reflexão e de abertura de todas as partes.
Eu acredito que é possível se fazer um diálogo e caminhar, mas não existe uma receita pronta para isso.
Nesse sentido, existem experiências de presença, sobretudo por parte da vida religiosa, no meio dos povos indígenas desde esse respeito, a presença das irmãzinhas com os tapirapé, Vicente Cañas, os consolatos em Roraima. Por que isso ainda não é uma realidade mais assumida, porque essa presença que acompanha e que junto descobre uma nova espiritualidade, onde tem elementos indígenas e elementos cristãos, porque essas experiências ainda não são valorizadas e muitas vezes fica como uma coisa exótica?
Penso que é uma questão de poder,
- o que está em jogo
- é um poder de dominar,
- de você fazer quantos batizados, quantos casamentos, quantos sacramentos ministrados.
Essa é uma visão, em contraponto de uma outra visão que é a visão ministerial do serviço e que essas pessoas que podem ser consideradas por uma parte da Igreja, tanto leigos como clérigos, como fracassos,
- eu acredito que esses são as grandes novidades da presença de Jesus Cristo no meio deles,
- que faz com a gente se encontre de coração para coração, todos pela mesma causa,
- pois a causa de Jesus era dar vida e vida em abundância a todos.
Então, acredito que essa é uma outra forma ministerial,
- mas nós teríamos que nos despir dos modelos que nós temos,
- fechados nos sacramentos.
- Refletir o que é que é sacramento, o que é que é litúrgico.
Tudo isso está em discussão, há uma discussão, eu acho que muito rica, e as experiências existem, elas estão relatadas, elas estão registradas, de experiências que dão certo de respeito às populações autóctones. Eu creio que há necessidade de uma abertura. Eu conheci Dom Aldo e Dom Aldo foi um bispo que viveu em Roraima tantos anos e disse “nunca batizei um índio”.
Junto com isso, temos outro fato, que é essa visão numérica, capitalista, da Igreja, que muitas vezes impossibilita uma maior presença em comunidades mais distantes, onde se demora muito tempo a chegar e tem que se investir muitos meios para estar lá, e que a justificativa muitas vezes é que não vale a pena gastar tanto dinheiro e esforço para chegar numa comunidade onde a gente “colhe” poucos frutos. Como mudar essa mentalidade?
Eu não sei como muda a mentalidade, eu sei como que é que a gente busca ser o mais fiel possível, com todas nossas infidelidades, ao Evangelho de Jesus, que é ir aonde estão as ovelhas desgarradas,
- e as ovelhas desgarradas não são aquelas que saíram do rebanho,
- são aquelas que estão à margem do rebanho,
- que não foram incluídas no rebanho.
E aí a visão numérica, capitalista, não pode contar, é contra o Evangelho, não dá para conciliar, eu não acredito que a gente possa fazer um acordo com isso, eu acho que a vida ela é uma totalidade, ainda que seja uma.
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