Uma das ameaças para o humanismo é a tese animalista que pretende que entre o ser humano e os outros animais não há uma distinção qualitativa, mas apenas de grau. É claro que, no quadro da evolução e uma vez que aparecemos dentro dela, não admira que encontremos já nos chimpanzés, gorilas, bonobos e outros, antecedentes, indícios do que caracteriza os humanos.
Pergunta-se: se, como eles, o ser humano também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, quais são as notas especificamente humanas que podemos observar no desempenho dessas actividades por parte do ser humano, mostrando que é qualitativa e essencialmente distinto dos outros?
Aponto algumas dessas características observáveis.
* Na história gigantesca da evolução – o big bang foi há uns 13 700 milhões de anos e muito recentemente foi-se dando o processo da hominização -, sabemos que há ser humano, quando encontramos rituais funerários, diferentes segundo as culturas, mas sempre presentes. Aí, temos o sinal indiscutível de que já estamos em presença de alguém.
- A consciência da mortalidade,
- gastar tempo com os mortos,
- a sepultura,
são acções especificamente humanas, essencialmente distintas das do animal.
* O homem é por natureza animal symbolicum, talvez melhor, animal symbolizans (simbólico, simbolizante). Capaz de simbolizar, é constitutivamente animal loquens (animal falante). Inserida no mundo simbólico e simbolizante, surge a linguagem humana, e o que a define enquanto o próprio do homem é a sua dupla articulação em unidades significativas (monemas) e unidades distintivas (fonemas).
Pela linguagem, abrimo-nos
- ao mundo,
- ao ser,
- à história,
- ao que há e ao que não há,
- a possibilidades,
- à transcendência,
- estabelecemos comunidade.
Aristóteles viu bem, ao definir o homem como animal que tem logos (razão e linguagem), e assim, animal político:
“Só o homem, entre os animais, possui fala.
- A voz (o som) é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais.
- Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto.
E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais:
- possuir, de modo exclusivo,
- o sentido do bem e do mal,
- do justo e do injusto
- e das demais apreciações.
A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a pólis.”
* O animal é conduzido pelo instinto.
- Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça.
- Face à fêmea no período do cio, não resistirá.
- O homem, pelo contrário, por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não.
Foi neste sentido que Max Scheler escreveu que o homem é “o asceta da vida”, o único capaz de dizer não aos impulsos instintivos: não se encontra na simples continuidade da vida no sentido biológico.
- Autopossui-se,
- é dono de si mesmo,
- senhor de si e das suas acções
- e, por isso, responsável: responde por si e pelas suas acções, é um animal livre e moral.
Com base na neotenia, o homem tem como tarefa na vida fazer-se a si mesmo: fazendo o que faz, está a realizar-se a si próprio. Por isso, está sempre
- inconcluído,
- numa abertura ilimitada,
- produzindo o novo.
O homem nunca está satisfeito (de satis-factus: suficientemente feito), acabado. Esta inconclusão manifesta que a sua temporalidade e o seu ser têm uma estrutura essencialmente aberta, de tal modo que se deve dizer que o homem é o ser do transcendimento: como escreveu Pascal, o homem mora algures entre “le néant et l”infini”( o nada e o infinito), aberto ao Infinito. Precisamente porque os outros animais se adaptam ao real, sem superação, não podemos falar em transcendência animal.
Também se revela aqui a capacidade criadora, inovadora, do homem, de tal modo que a vida da humanidade é autenticamente histórica, na abertura à Transcendência.
- O homem é o ser da pergunta
- e, de pergunta em pergunta,
- chega a perguntar ao Infinito pelo Infinito, isto é, por Deus.
Neste sentido, é constitutivamente metafísico e religioso. Os animais comunicam, mas nunca se conseguiu que mesmo um chimpanzé faça uma pergunta.
O homem também repousa. Mas podemos constatar que, por vezes, o aparente repouso é outra coisa, no que chamamos ensimesmamento, como se vê em O Pensador, de Rodin:
- entrada dentro de si próprio,
- descida à sua intimidade única,
- à subjectividade pessoal.
O ser humano vem a si mesmo como único. Aí, tem a experiência de eu enquanto própria e exclusiva, face ao outro, que é outro eu, outro como eu, mas simultaneamente um eu que não sou eu: um eu outro, impenetrável.
Disse Jacques Lacan: “Possuir o Eu na sua representação: este poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a terra. Por isso, é uma pessoa”.
Sabe e sabe que sabe, é autoconsciente, consciente de ser consciente.
E muitas outras características e notas poderia acrescentar, como fez o médico e filósofo Pedro Laín Entralgo – alguém interessado poderá consultar o meu livro Corpo e Transcendência: a vida no real, o pensamento abstracto, o riso e o sorriso, a contemplação e a criação de beleza – sublinho nomeadamente a música, referida ao indizível -, o amor de autodoação, o suicídio, a capacidade para o ódio, a admiração, a inveja e a extravagância, o choro, a esperança… Erguer edifícios jurídicos, o estabelecimento da lei e da igualdade de todos perante a lei são realidades que dão que pensar, na comparação entre o animal humano, pessoa, e os outros animais.
Last but not least: quem debate a questão de saber se a distinção entre os humanos e os outros animais é meramente quantitativa, de grau, ou qualitativa, essencial, somos nós e não eles. É preciso combater a ameaça de animalização da sociedade.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/pessoas-e-animais-9398141.html
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