O artigo mais recente do filósofo pode sugerir tanto derrotismo quanto apelo à rebeldia e mobilização. É, nesse sentido, um espelho do cenário brasileiro
Por Antonio Martins | Vídeo: Gabriela Leite
“ Não haverá 2018 ”, escreveu no final da semana passada, num artigo na Folha de S. Paulo, o filósofo e psicanalista Vladimir Safatle. A sentença repercutiu intensamente, em meio a uma atmosfera política já marcada pelo pessimismo. Mas a leitura cuidadosa do texto mostra que ele permite duas interpretações muito distintas – e até mesmo contraditórias – entre si.
A primeira interpretação é a mais óbvia e – é pena – a que tem sido mais frequentemente adotada. Ela conduz ao derrotismo, à desmobilização. Sugere que sofreremos uma enorme derrota política em breve e não há o que fazer diante dela – “não haverá 2018”.
Os golpistas
- não quebrariam a legalidade,
- nem adotariam sua vasta agenda de retrocessos, argumenta Safatle,
- para entregar o poder de mão beijada.
- O golpe e seus horrores se prolongarão.
- A luta tornou-se vã.
O problema desta interpretação é que, além de conformista, ela é caolha.
- Enxerga um lado importante do cenário: o programa de ataques aos direitos sociais une, no momento, um amplo arco de forças conservadoras.
- Mas fecha os olhos para outro aspecto, igualmente decisivo. Estes mesmos setores estão profundamente divididos quanto às alternativas de poder e eleitorais.
Basta ler as próprias publicações conservadoras.
A capa de Época desta semana destaca os conflitos, reais e agudos, no interior do PSDB – o partido mais identificado, do ponto de vista programático, com as contrarreformas. Tasso Jereissati, Aécio Neves e Geraldo Alckmin, os três tucanos mais emplumados, já não se bicam – ou melhor, não param de se bicar.
Observe também Veja. A revista que se tornou símbolo do golpe e dos retrocessos dedica-se, na edição mais recente, a desancar o ministro Gilmar Mendes, do STF, certamente o político – sim, o político – que melhor representava, ainda há pouco, a tentativa de impor o domínio conservador.
Os choque multiplicam-se
- entre Gilmar Mendes e o procurador-geral Rodrigo Janot.
- Entre Janot e a Globo, de um lado, e Temer e sua camarilha, de outro.
- Entre Rodrigo Maia, presidente da Câmara, que sonha com a volta das doações empresariais aos partidos e o STF.
- Entre Meirelles – visto por alguns como candidato ideal dos conservadores à Presidência – e o PMDB.
- Entre os próprios partidos que queriam aprovar uma contrarreforma política, e agora parecem cada vez mais incapazes de conseguir aprová-la a tempo.
Como estes setores, em disputa acirrada entre si mesmos e cada vez mais desgastados junto à opinião pública, cancelariam 2018?
O único caminho que parece minimamente viável é uma emenda parlamentarista. Ainda assim, seria uma tentativa de altíssimo risco, já rechaçada duas vezes em plebiscito, capaz de despertar reação popular – inclusive porque o Parlamento, que assumiria o poder, é visto, com boa dose de razão, como uma quadrilha.
Por tudo isso, é preciso buscar, no texto de Safatle, um outro sentido, que não o do derrotismo, o de entregar os pontos antes do jogo terminar.
Este segundo sentido é, ao contrário,
- irreverente às instituições,
- rebelde
- e mobilizador.
O artigo sugere, lido a partir de outro ponto de vista, que
- não se pode adiar as lutas sociais para 2018,
- nem confiar unicamente nas eleições.
Traz, portanto, um alerta. Há um gravíssimo descolamento entre
- as campanhas eleitorais que estão na rua – inclusive as que se apresentam à esquerda, como as de Lula e Ciro e, desde essa semana, Marina Silva –
- e os fatos políticos devastadores que estão se sucedendo.
Tanto Lula quanto Ciro criticam o golpe, é verdade. Mas ambos evitam, ao menos até o momento, assumir compromissos concretos com a revogação da agenda de retrocessos.
Faria toda diferença. Imagine que estes candidatos propusessem, por exemplo, submeter a referendo popular as principais medidas adotadas pelo governo Temer e por um Congresso Nacional cada vez mais desprezado pela maioria.
Imagine abrir, desde já, um debate nacional sobre
- o congelamento de gastos sociais,
- a entrega do Pré-Sal,
- os atos que atingem indígenas e quilombolas,
- as contrarreformas trabalhista e da Previdência,
- a redução do salário mínimo,
- a permissão da terceirização selvagem.
São medidas que atingem dezenas de milhões de brasileiros. Seu debate tem sido bloqueado pelos meios de comunicação, que
- se aliam à agenda do governo
- mas temem abrir discussão pública sobre ela.
Os candidatos, porém, teriam condições de
- desafiar este silêncio,
- criar fatos políticos,
- transformar em ação a revolta surda dos que sabem que seus direitos estão sendo atacados.
Não o fazem – e isso é um sintoma de que a política institucional brasileira está cada vez
- mais esvaziada,
- mais distante da articulação de projetos para o país,
- mais reduzida a uma disputa rude,
polarizada apenas na aparência, porém, rasa, incapaz de expressar
- projetos distintos,
- visões realmente distintas sobre os enormes problemas nacionais
- e as saídas pare resolvê-los.
Se os partidos e os candidatos omitem, se com isso estimulam a letargia, o conformismo, a adaptação da sociedade aos retrocessos e ao cinismo, talvez caiba à sociedade fazê-lo. Há muito existe no Brasil, em caráter embrionário, uma nova cultura política – a da autonomia. Ela tem, no entanto, se limitado a criticar os partidos e a vida institucional, sem assumir sua própria responsabilidade.
Talvez seja a hora de dar um novo passo, e nesse sentido o grito de alerta de Safatle – “não haverá 2018” – pode converter-se em algo como “não espere 2018, faça-o acontecer”.
É um chamado cada vez mais necessário.
Antonio Martins
Fonte: http://outraspalavras.net/blog/2017/08/31/a-ambiguidade-de-safatle-e-a-do-brasil/#more-14819
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