Juan Ignacio Cortés @JuanICortes –
Tradução: Orlando Almeida – Foto: © RomaNews
Com o tempo tornou-se uma referência mundial graças ao seu trabalho de mediação em conflitos armados (Moçambique, Guatemala), aos seus programas de luta contra a aids [sida] na África, à organização de encontros ecumênicos globais ou à sua campanha de acolhida de refugiados sírios através do sistema de corredores humanitários. Graças a esta última iniciativa, milhares de pessoas puderam deixar para trás a guerra civil que ensanguenta a Síria e chegar sãs e salvas à Itália sem ter que arriscar a vida atravessando o Mediterrâneo.
Riccardi está acostumado a encontrar-se com chefes de Estado e com os líderes religiosos. Chegou inclusive a ser um ministro durante o governo de Mario Monti. Responde às perguntas rapidamente, sem hesitar, e nas suas respostas transparece tanto o seu brilhantismo intelectual como a sua sagacidade romana. “Eh… fizemos um livro!” – diz ele ao final de uma entrevista em que, logicamente, nós fizemos render ao máximo o tempo que ele nos tinha concedido.
A ENTREVISTA:
O que os levou a formar a Comunidade de Santo Egídio?
A Roma dos anos 60 parecia uma cidade do Terceiro Mundo. Nós éramos um grupo de estudantes que descobrimos os pobres na periferia da cidade, nos barracos. Era um mundo marginalizado, sem esperança. Santo Egídio começa com o conhecimento dos pobres, dos romanos da periferia. Daí, saímos para as periferias das cidades europeias. Depois a periferia foi a África.
Como é que uma comunidade criada por um grupo de estudantes se torna um movimento de mais de 50 mil membros, em mais de 70 países, que discute planos de paz com governos ou a acolhida de refugiados na Europa com a chanceler Angela Merkel?
Não é algo racional. É a história. A história não responde só a questões racionais. A história leva-nos a viver situações diferentes. É preciso ler os sinais dos tempos e perceber as necessidades. Por exemplo, quando em Moçambique ninguém trabalhava pela paz, nós começamos a fazê-lo. Por outro lado, quero esclarecer que não somos um movimento. Somos uma fraternidade de comunidades que vivem em muitos países, mas que se sentem muito próximas neste mundo global.
Consideramos a nossa fraternidade um dom que pode contribuir para superar o renascimento do nacionalismo que nos entristece tanto. Temos que buscar a fraternidade dos povos. Ai de nós se apenas globalizarmos os mercados e não fizermos uma globalização cultural, humana e também – por que não? – do espírito! Naturalmente, globalização não quer dizer perder a própria identidade, mas criar uma civilização que nos permita viver juntos.
A comunidade de Santo Egídio é conhecida pelo seu papel nas negociações de paz ou pelos seus programas de luta contra a aids na África, mas se abro a sua página web diz que a sua primeira tarefa é a oração.
A oração é essencial. Um homem ou uma mulher não podem ser reduzidos à sua atividade, ao que fazem. O homem que reza abre o seu coração aos outros e aos problemas do mundo.
Você diz que o mundo é uma fábrica de periferias, a ponto de estas constituirem a maioria do mundo. E que, se a Igreja não estivesse presente nelas, estaria condenada a ser irrelevante.
Por demasiado tempo, vimos a Igreja como um monumento, como uma herança do passado que devemos defender num tempo estranho ao cristianismo. Não é verdade. Este é uma boa época para ser cristão. No entanto, devemos estar atentos para compreender o nosso tempo. E aqui entra o tema da fábrica das periferias. As cidades estão desmoronando. Joanesburgo, por exemplo: o centro da cidade já não existe. As pessoas vivem em comunidades fechadas e os pobres na periferia.
Em São Paulo acontece o mesmo: os ricos deslocam-se de helicóptero, não andam no meio da gente. A cidade já não é mais uma comunidade, mas um conjunto de periferias.
- O que a Igreja deveria fazer?
- Ser uma minoria entre as minorias?
- Ou ir até onde está o povo, convertendo a periferia em centro?
Se num bairro periférico se celebra a Eucaristia, se existe uma comunidade cristã, ali há um centro. O drama do nosso tempo não é apenas a periferização das cidades, mas a solidão.
Hoje o homem e a mulher estão muito sozinhos. Trinta anos atrás, um trabalhador do norte da Itália quando perdia o emprego, voltava para casa e encontrava a sua mulher; enraivecido, insultava-a; depois ia à seção do Partido Comunista.
- Lá explicavam-lhe que a sua demissão era um episódio da lógica das relações entre o capital e o proletariado,
- diziam-lhe que as mulheres não deviam ser maltratadas
- e, por fim, faziam uma coleta para ajudá-lo.
Hoje, o trabalhador volta para casa, encontra a carta do advogado da sua ex-mulher pedindo a pensão, não há seção do partido… Ele está sozinho com a televisão. Quem vai explicar a ele o que aconteceu?
No seu livro, você cita vários exemplos de como a Igreja saiu para as periferias para logo voltar ao centro. É o caso dos padres operários de Paris ou dos fundadores das ordens monásticas. Como seriam hoje esses padres operários, esses monges?
Fico indignado com o que alguns dizem: que falar de periferias é um slogan que foi inventado pelo Papa Francisco. Não é. A saída para as periferias tem uma tradição enorme na vida da Igreja. Dito isto, eu não saberia como responder à sua pergunta. Cada um deve escolher a periferia que mais o interpele. O chamado a sair para as periferias não é apenas para o clero, mas também para os leigos. Para todos os cristãos. É um chamado que tem muito a ver com a política. É um desafio não só eclesial, mas também civil e político.
Você diz que o seu livro é mais de perguntas do que de respostas. Mas há pelo menos alguma pista que nos diz indique se nesse caminho para as periferias estamos indo na direção certa?
A pista é voltar a sonhar. Sonhar uma cidade mais comunitária e mais humana. No fundo, o mundo global é uma grande rede de cidades. O desafio é integrar os imigrantes nela. Quem o faz? As instituições? Fazem-no os grupos cristãos e os bairros comunitários. Quando essa integração não se realiza, aparecem os guetos, as periferias.
Você diz no seu livro que o mundo cristão tinha esquecido a realidade da periferia, concentrando-se mais na moral. Pareceria que a Igreja vivia presa à ideia de uma cristandade que já não existe.
Uma igreja minoritária tentou influenciar o centro político, mediático e econômico. O centro de decisão, poderíamos dizer. Isto é o que as minorias costumam fazer: tentar obter concessões do poder fazendo lobby. No entanto, a ideia de Igreja do Papa Francisco não é a de uma instituição que faz lobby, mas a de uma Igreja que se mistura com o povo e, portanto, com as periferias. É uma mudança de perspectiva, de uma Igreja de minorias para uma Igreja do povo. Esta Igreja do povo já é uma realidade, mas é sobretudo um sonho.
Há pessoas que não compartilham essa visão da Igreja popular e até a ridicularizam.
É verdade, até mesmo entre os bispos e os cardeais há muitos que discordam. É normal. Não se pode fazer uma mudança tão grande em poucos anos. Por outro lado, se todos estivessem de acordo, isso significaria que não está mudando nada.
Tem-se comparado a visão de Bento XVI, que tentou reformar o centro da Igreja, com a visão de Francisco, que está tentando realizar uma reforma da Igreja a partir das periferias.
Honestamente, não me parece que o Papa Bento tenha querido reformar o centro da Igreja. Parece-me que ele deu uma contribuição muito grande para o pensamento e a teologia. O seu objetivo era, antes de tudo, o diálogo com o pensamento laico iluminista. Não creio que o problema da Igreja seja a reforma do centro, da cúria. Se a cúria é um problema, é um problema pequeno.
Os grandes problemas que a Igreja deve enfrentar estão fora dela:
- o grande problema da miséria,
- o problema de comunicar o Evangelho àqueles que não o receberam
- e o grande desafio do cristianismo neo-protestante e neo-carismático.
Falamos de uma galáxia de 600 milhões de pessoas que é a religião preferida do mercado global, como o catolicismo e o protestantismo foram durante a expansão colonial.
Falando desses problemas maiores: a Comunidade de Santo Egídio acolheu na Itália uns mil refugiados, mais do que muitos países europeus. Não é uma vergonha para a Europa?
Os governos europeus devem examinar a sua consciência. Por outro lado, os governos não podem enfrentar sozinhos o problema da imigração. Isto deve ser feito pela União Europeia como um todo. Os governos sabem que esta é uma questão que os faz perder ou ganhar eleições e consideram-na um assunto reservado. É preciso levar em conta várias coisas.
- Primeiro, com a crise demográfica que a Europa sofre, precisamos dos imigrantes.
- Em segundo lugar, se queremos manter os imigrantes nos seus países (penso sobretudo na África, de onde procedem 85% dos imigrantes que chegam à Europa), deveríamos fazer uma política de longo prazo, fazer com que os chefes de Estado africanos assumam a responsabilidade pelo seu povo.
Você viu algum dos governantes africanos vir a Lampedusa e inclinar-se diante das vítimas? Eu não. É preciso colaborar com os governos africanos para que assumam as suas responsabilidades para com os seus cidadãos. A política de migração europeia é feita em Ceuta, Melilha, Líbia … Isso deve ser feito no coração da África. Tudo o resto é miopia infinita.
Você recebeu o Prêmio Carlos Magno em 2009 e está falando o tempo todo com líderes europeus. Você acha que a Europa é uma ideia errada?
Se a Europa é uma ideia errada, falhamos todos nós europeus. Como podemos enfrentar os grandes desafios do mundo e da economia global com as dimensões de Portugal, Itália ou Espanha, que – seja-me permitido dizer – são países pequenos. Eles estão cheios de história, de cultura, mas são pequenas embarcações de dimensões diminutas demais para navegar no mar da globalização. Precisamos da grande nave Europa para nos movimentarmos nesse mar.
Se rejeitarmos a ideia da Europa, os países vão para o suicídio. Um suicídio assistido, mas suicídio. Quando fazemos muros para impedir que os imigrantes passem, estamos nos condenando ao suicídio demográfico. Escolhemos a segurança de hoje, mas a insegurança de amanhã. A única escolha é a Europa:
- uma Europa de duas velocidades,
- com políticas comuns de segurança, de relações exteriores e militares.
Temos de começar a implementar todas essas coisas já.
A comunidade de Santo Egídio teve sempre uma dimensão política. Você foi ministro no governo Monti. Nos nossos dias, todavia, a política está desprestigiada e o populismo avança. Como enfrentar isto?
O populismo é uma expressão do medo que nos dá um mundo global em que não sabemos de onde as ameaças podem vir. Os partidos populistas são partidos do medo e defendem uma política do medo. Frente a isso, devemos ter a coragem de fazer uma política clara que, para mim, deve ter dois objetivos:
- a Europa
- e a segurança de nossas cidades.
Segurança no sentido do bem-estar, bem entendido.
Depois, devemos ter a coragem de defender as nossas ideias. Eu admiro Macron porque ganhou dizendo “Europa”. Se copiarmos os populistas, ao votar, as pessoas vão preferir o original à cópia. Este é o problema de muitos partidos de centro ou de esquerda que copiaram uma política populista de direita.
Mas muitas pessoas se sentem deixadas para trás e vêem que a política tradicional não está enfrentando os seus problemas. Não serei quem defenda a política tradicional. Não vejo os políticos no meio do povo, falando com as pessoas... É esta a base da política. Senão, estamos falando de gestão, não de política.
Então, do que precisamos é de mais política.
Sim, precisamos de mais política e um horizonte comunitário, uma ideia de comunidade.
Juan Ignacio Cortés
Fonte: http://www.21rs.es/es/revista-21/3256_Andrea-Riccardi-Es-una-buena-epoca-para-ser-cristiano.html
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