Padre Anselmo Borges -18/02/17
Quando comparamos o ser humano e os outros animais, notamos que a linguagem é característica decisiva dos humanos. Já no século XVIII se deu essa compreensão, pois encontramos inclusivamente caricaturas com um missionário no meio da selva africana dizendo a um macaco: “Fala, e eu baptizo-te.”
Se falasse, era humano. Evidentemente, esta fala refere-se ao que é próprio do ser humano: dupla articulação da linguagem.
Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só podemos compreender-nos a nós próprios em corpo, com outros e na história.
O homem, pelo facto de ser “zôon lógon échon”, animal que tem logos (razão e linguagem), é também “zôon politikón“, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles, na “Política”:
“A razão de o homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o homem, entre os animais, possui a palavra.”
E continua: “A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo,
- o sentido do bem e do mal,
- do justo e do injusto
- e das demais apreciações.
A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade.”
A linguagem humana não se reduz à expressão emotiva do prazer e do desprazer. É capaz
- de fazer juízos morais, e distinguir o bem e o mal,
- o justo e o injusto,
- partilhar
- e debater publicamente estas apreciações.
Deste modo, a linguagem está na base da ética e funda eticamente a pólis (a cidade, no sentido da vida política).
Percebe-se assim que o ser humano é constitutivamente dialogante. Aliás, o que é, logo à partida, pensar senão falar consigo mesmo? Damos tantas vezes connosco a falar connosco – isso mesmo, a dialogar connosco no mais íntimo de nós, quando precisamos de deliberar e vamos apresentando razões a favor e razões contra uma determinada tomada de posição. Eu próprio, escrevendo o que aí fica, vou dialogando comigo.
Precisamos de falar connosco, mas, para isso, é necessário ouvir a Palavra primeira que fala no silêncio. Onde é que se acendem as nossas palavras senão nessa Palavra primeira? Ora, essa Palavra originária é o próprio Deus. Não diz a Bíblia que Deus tudo criou pela Palavra? Então, Deus fala através da criação e de todas as criaturas. Precisamos de ouvi-lo. Rezar é isso: ouvir Deus e falar com ele.
É preciso falar, dialogar em família. Quando o diálogo morre numa família, o amor vai esmorecendo e caminhando também para a morte. Mas hoje, desgraçadamente, parece que não há tempo para dialogar em família, porque o barulho das televisões toma conta de tudo. E os telemóveis e quejandos, meu Deus! Já se diz que a Última Ceia do século XXI representa Jesus com as mãos à cabeça, aflito, porque os Apóstolos estão todos entretidos a olhar e a “dedar” entusiasmados nos seus smartphones!…
Quem não ouve a Palavra que fala no Silêncio pode produzir tempestades de palavras, mas elas são ocas ou até perniciosas. Porque então a palavra já não existe para “manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto”. Ora, não é isso que frequentemente se passa nas campanhas eleitorais e nos Parlamentos? E também em muitas homilias de padres e bispos e discursos de todo o género?
Como faz falta a palavra poética, criadora, revigoradora e que cura! Ah, sim, pela palavra
- animamos alguém,
- damos-lhe força,
- esperança, abrimos-lhe futuro.
Com uma palavra podemos “matar” alguém, destruir-lhe a vida. Por exemplo, um professor que diz a um jovem: não fará nada na vida, nunca conseguirá fazer a minha “cadeira”…
Tudo fica abalado, quando os sofistas e a sofística tomam conta do espaço público e privado. Nunca mais se vai ao essencial. E tudo se agrava agora com a ameaça da banalização total das redes sociais. Para isso chama a atenção um comentário aceso e paradigmático de Umberto Eco, pouco antes de morrer:
“As redes sociais concedem o direito de palavra a legiões de imbecis que antes falavam só no bar depois de um copo de vinho, sem danos para a colectividade. Eram imediatamente remetidos ao silêncio enquanto agora têm o mesmo direito de palavra de um prémio Nobel. Assistimos à invasão dos imbecis.”
Já Pascal, nos Pensamentos, se queixava: “… toda a desgraça dos homens provém de uma só coisa, que é não saber permanecer em repouso num quarto.”
É preciso rezar com Sophia de Mello Breyner: “Deixai-me com as coisas/ Fundadas no silêncio.”
Anselmo Borges
Fonte: http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/para-falar-ouvir-o-silencio-5659218.html
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