OUTRASMÍDIAS – CRISE BRASILEIRA

Por Vladimir Safatle, na Comissão Arns – o1.12.2022 | Imagem: DAQUI
Democracia foi dilapidada. Reconstruí-la exige punir os crimes de Bolsonaro, as chantagens dos militares e a politização das políticas. Primeiros meses do novo governo serão essenciais para isso. Senão estaremos fadados a repetir o passado…
Muitas vozes alertam o Brasil sobre os custos impagáveis de cometer um erro similar àquele feito há 40 anos.
No final da ditadura militar,
- setores da sociedade e do governo impuseram o silêncio duradouro sobre crimes contra a humanidade
- perpetrados durante os vinte anos de governo autoritário.
Vendia-se a ilusão de que se tratava de astúcia política.
Um país “que tem pressa”, diziam, não poderia desperdiçar tempo acertando contas com o passado,
- elaborando a memória de seus crimes,
- procurando responsáveis pelo uso do aparato do Estado para prática de tortura, assassinato, estupro e sequestro.
Impôs-se a narrativa de que
- o dever de memória seria mero exercício de “revanchismo”
- – mesmo que o continente latino-americano inteiro acabasse por compreender que quem deixasse impunes os crimes do passado iria vê-los se repetirem.
Para tentar silenciar de vez as demandas de justiça e de verdade,
- vários setores da sociedade brasileira, desde os militares até a imprensa hegemônica,
- não temeram utilizar a chamada “teoria dos dois demônios”.
Segundo ela, toda a violência estatal teria sido resultado de uma “guerra”, com “excessos” dos dois lados.
Ignorava-se, assim, que um dos direitos humanos fundamentais na democracia é o direito de resistência contra a tirania.
- Já no século 18, o filósofo John Locke, fundador do liberalismo, defendia o direito de todo cidadão e de toda cidadã matar o tirano.
- Pois toda ação contra um estado ilegal é uma ação legal.
Note-se: estamos a falar da tradição liberal.
Os liberais latino-americanos, porém, têm essa capacidade de estar sempre abaixo dos seus próprios princípios.
Por isso, não é surpresa alguma ouvir um ministro do Supremo Tribunal Federal, como Dias Toffoli, declarar, em pleno 2022, pós-Bolsonaro:
- “Não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina,
- uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor,
- sem conseguir se superar (…) o Brasil é muito mais forte do que isso”.
- que confunde exigência de justiça com clamor de ódio,
- que vê na punição a torturadores e a perpetradores de golpes de estado apenas vingança,
é a expressão mais bem acabada de um país, esse sim, que nunca deixou de olhar para o retrovisor.
Um país submetido a um governo que, durante quatro anos,
- fez de torturadores heróis nacionais,
- fez de seu aparato policial uma máquina de extermínio de pobres.
Alguns deveriam pensar melhor sobre a experiência social de “elaborar o passado” como condição para preservação do presente.
- Não existe “superação” onde acordos são extorquidos e silenciamentos são impostos.
- A prova é que, até segunda ordem, a Argentina nunca mais passou por nenhuma espécie de ameaça à ordem institucional.
Nós, ao contrário, enfrentamos tais ataques quase todos os dias dos últimos quatro anos.
- Nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido
- se houvéssemos instaurado uma efetiva justiça de transição,
- capaz de impedir que integrantes de governos autoritários se auto-anistiassem.
Pois dessa forma acabou-se por permitir discursos e práticas de um país que “ficou preso no passado”.
Ocultar cadáveres, por exemplo, não foi algo que os militares fizeram apenas na ditadura.
Eles fizeram isso agora, quando gerenciavam o combate à pandemia,
- escondendo números,
- negando informações,
- impondo a indiferença às mortes como afeto social,
- impedindo o luto coletivo.
É importante que tudo isso seja lembrado neste momento. Porque conhecemos a tendência brasileira ao esquecimento.
- Este foi um país feito por séculos de crimes sem imagens, de mortes sem lágrimas, de apagamento.
- Essa é sua tendência natural, seja qual for o governante e seu discurso.
- As forças seculares do apagamento são como espectros que rondam os vivos.
Moldam não apenas o corpo social, mas a vida psíquica dos sujeitos.
Cometer novamente o erro do esquecimento, repetir a covardia política que instaurou a Nova República e selou seu fim, seria a maneira mais segura de fragilizar o novo governo.
Não há porque deleitar-se no pensamento mágico de que tudo o que vimos foi um “pesadelo” que passará mais rapidamente quanto menos falarmos dele.
O que vimos, com toda sua violência, foi o resultado direto das políticas de esquecimento no Brasil. Foi resultado direto de nossa anistia.
A sociedade civil precisa exigir do governo que se inicia a responsabilização pelos crimes cometidos por Bolsonaro e seus gerentes.
Isso só poderá ser feito nos primeiros meses do novo governo, quando há ainda força para tanto.
Quando falamos em crimes,
- falamos tanto da responsabilidade direta pela gestão da pandemia,
- quanto pelos crimes cometidos no processo eleitoral.
O Tribunal Penal Internacional aceitou analisar a abertura de processo contra Bolsonaro por genocídio indígena na gestão da pandemia.
- Há farto material levantado pela CPI da Covid, demonstrando os crimes de responsabilidade do governo
- que redundaram em um país com 3% da população mundial contaminada e 15% das mortes na pandemia.
Punir os responsáveis não tem nada a ver com vingança, mas com respeito à população. Essa é a única maneira de fornecer ao estado nacional balizas para ações futuras relacionadas a crises sanitárias similares, que certamente ocorrerão.
Por outro lado, o Brasil conheceu duas formas de crimes eleitorais.
- Primeiro, o crime mais explícito, como o uso do aparato policial para impedir eleitores de votar, para dar suporte a manifestações golpistas pós-eleições. A polícia brasileira é hoje um partido político.
- Segundo, o pior de todos os crimes contra a democracia: a chantagem contínua das Forças Armadas contra a população.
- Forças que hoje atuam como um estado dentro do estado, um poder à parte.
Espera-se do governo duas atitudes enérgicas:
- que coloque na reserva o alto comando das Forças Armadas que chantageou a República;
- e que responsabilize os policiais que atentaram contra eleitores brasileiros, modificando a estrutura arcaica e militar da força policial.
Se isso não for feito, veremos as cenas que nos assombraram se repetirem por tempo indefinido.
Não há nada parecido a uma democracia sem uma renovação total do comando das Forças Armadas e sem o combate à polícia como partido político.
A polícia pode agir dessa forma porque sempre atuou
- como uma força exterior,
- como uma força militar a submeter a sociedade.
Se errarmos mais uma vez e não compreendermos o caráter urgente e decisivo de tais ações,
- continuaremos a história terrível de um país fundado no esquecimento
- e que preserva de forma compulsiva os núcleos autoritários de quem comanda a violência do Estado.
Mobilizar a sociedade para a memória coletiva e suas exigências de justiça sempre foi e continua sendo a única forma de efetivamente construir um país.
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