Gabriel Díaz Campanella – 26 Novembro 2022 / El País
Nesta entrevista, realizada em sua chácara, em Montevidéu, o ex-presidente uruguaio (2010-2015) defende um entendimento global baseado no instinto de cooperação que caracterizou o progresso humano.
“Não há nada mais importante do que os jovens discutirem este mundo”, ressalta com voz imperativa e visão assertiva, sentado em frente à sua casa, entre nespereiras, mudas e sabiás.
A entrevista é de Gabriel Díaz Campanella, publicada por El País, 24-11-2022. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Com o fim da pandemia mais próximo, como interpreta o que aconteceu?
Penso que a pandemia serviu para desnudar algumas das fragilidades que, como humanidade, temos hoje.
- E uma delas é que a propriedade do conhecimento teve muito mais valor do que a necessidade humana de contribuir para poder coletivizar o conhecimento.
- Os sistemas de vacinas poderiam ter sido ampliados de forma muito mais rápida e isso acabou custando milhões de vidas.
O que falhou?
A ciência não falhou, o que falhou foi a política, que não teve a capacidade de coagir o sistema econômico para poder fazer o que deveria ser feito rapidamente.
Somado a isso, a fome no mundo aumentou em 150 milhões de pessoas. Hoje, mais de 800 milhões vivem com fome.
Isso teria que ser confrontado com um número que não gerenciamos,
- sobre quanto vale o que poderíamos chamar de economia de luxo ou economia do esbanjamento,
- para demonstrar a nós mesmos que, na verdade, recursos existem, mas não os utilizamos como deveríamos.
Por um lado, há fome, mas também há cálculos de que 25 ou 30% dos alimentos são jogados fora.
Como corrigir isto?
A responsabilidade é política, porque sabemos o que acontece. E temos uma ideia do que deveria ser feito, mas não podemos agir porque a política não pode mexer com o conjunto de interesses que estão concatenados por trás disto.
A humanidade criou uma civilização notável, alcançou a ciência, multiplicou a produtividade e a variedade das coisas, mas não podemos pará-la, não podemos reconduzi-la.
Talvez, esta seja a última globalização do homem, se não a corrigir.
- Houve várias, porque Roma foi uma globalização, a história do império chinês também. Mas todas tiveram direção política.
- Esta é uma globalização que está sendo realizada pelos interesses do mercado,
- onde a política é um pálido espectador que vai atrás
Como a política poderia recuperar esse lugar?
Precisamos de um governo mundial e entrarmos em acordo para respeitá-lo.
- Teria que ser eminentemente técnico-científico em muitos aspectos.
- Mas nenhum país vai ceder por causa do conjunto de interesses que há por trás e por causa de sua soberania.
Os interesses nacionais acima dos ideais comuns.
Sim, claro! Existem contradições com o mundo das empresas transnacionais.
Algumas são mais fortes que um Estado, do ponto de vista da economia. Sobretudo, em Estados como o meu, o Uruguai. Estamos em um mundo sem direção política.
O que acontece com a Organização das Nações Unidas?
Precisamos de um acordo mundial. Se olharmos para a história das NaçõesUnidas, está sendo arrasada por nós. Estamos longe de ter o que precisamos, uma espécie de conselho científico que tome algumas medidas capitais que assumamos. Tive uma conversa recente com [o historiador Yuval] Harari. Sabe qual é a angústia dele?
O que lhe disse?
O mais penoso é isto: a humanidade não ter tempo, tempo humano, para reparar os desastres que causou ao planeta e que estejamos caminhando para um holocaustoecológico.
A vontade é pensar que isto pode ser corrigido.
Sempre acreditamos que existe uma resposta científica, que é possível. Ao longo da história, os seres humanos cometeram muitas barbaridades, mas não sabiam.
Agora, sabem.
A tragédia é que agora sabemos. Há mais de 20 anos,
- a ciência nos apontou, em Kyoto, que os fenômenos adversos seriam cada vez mais frequentes e intensos.
- A ciência nos disse o que deveria ser feito, e as décadas passam, surgem os eventos e não fazemos o que temos que fazer.
O que está falhando é a política.
A grande questão é se o gênero humano como tal está chegando aos limites de sua capacidade de se autodirigir.
Essa inclinação humana à destruição aparece também nas guerras, na Europa do Leste, Oriente Médio, Ásia, África.
Considero que o homem não saiu da pré-história. Enquanto tivermos que utilizar a guerra como uma expressão do fracasso da política, não teremos saído da pré-história. É muito provável que a humanidade esteja utilizando nada menos do que 2,5 milhões de dólares por minuto em gastosmilitares. É uma das estupidezes mais colossais que pode existir.
Segundo a Anistia Internacional, 70% das vendas de armas estão nas mãos dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU: Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. Como é possível almejar a paz?
A fabricação de armas se transforma em uma ferramenta diplomática, de influência, e se torna uma força econômica que opera nos governos, porque há um lobby da força armamentista. As galinhas estão programadas para botar ovos e os exércitos para a guerra.
Se permitirmos que influenciem nas decisões políticas, estamos fritos.
Por isso, se as novas gerações não assumirem as cartas sobre o assunto, no tema ecológico, no da guerra… Não há nada mais importante do que os jovens discutirem este mundo! Temos que mudar a cultura.
Isto aparece frequentemente em seus discursos. Para você, o que é a cultura?
A cultura é o repertório que nos faz apreender as chaves fundamentais daquilo que nos cerca, de nossa existência, que fazem a vida. E respeitá-las, estarmos integrados a esse mundo, não nos sentirmos alheios. A cultura é também uma necessidade que está latente, é um bem imaterial que nos ajuda a viver. É o amor à vida.
Como essa mudança cultural deveria ser conduzida?
Eu pertenço a outro tempo. Éramos filhos do racionalismo, da ruptura com o mundo escolástico e da entronização do deus Razão.
- O avanço da ciência do comportamento humano nos mostra que somos criaturas mais complicadas, mais emocionais.
- Muitas vezes, as decisões são tomadas pelo nosso inconsciente, subjetivamente, e nosso consciente encontra uma bateria de argumentos para justificá-las.
- Ou seja, primeiro sentimos, depois explicamos.
Para onde isso nos leva?
Na solidão, fiz esta pergunta para mim mesmo: Nós, sapiens, o que somos? Qual é o disco rígido que a natureza nos deu e quais são os fatores adquiridos por meio da civilização, da cultura, do tempo que nos cabe viver?
Que respostas encontrou?
O sapiensé um animal gregário, não pode viver na solidão. Viveu milhares de anos em grupo. A tal ponto que em todas as formas de direito antigo, depois da pena de morte, a pena mais grave era ser expulso do grupo.
Esses grupos existiam por causa de uma lei fundamental do homem: o instinto de cooperação.
O sapiens era fisicamente inferior ao neandertal, mas o neandertal não tinha esse senso de cooperação e sucumbiu.
Em parte, esse senso de cooperação explica o que somos.
Permitiu criarmos sociedade. Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo é indivíduo e há contradições. Para todas as coisas vivas, a natureza insere uma parcela de egoísmo.
- E isso também está no homem, há uma certa margem de conflito.
- Por isso, somos animais que precisam da política, porque a função da política, apesar dos conflitos, é manter a comunidade.
- A civilização é filha da cooperação.
Há muitos desajustes. A América Latina, por exemplo, é a região com as maiores desigualdades sociais e econômicas do mundo.
A América Latina é descendente de dois países feudais: Portugal e Espanha. Distribuiu a terra como recurso primigênio, com um critério feudal. E com isso começou a originar uma polarização, desde o início da nossa história, com uma classe dona de quase tudo, no meio nada e embaixo uma imensidão pobre.
E no século XXI, a cooperação pode contribuir para remediar a desigualdade?
É preciso aceitar o desafio da sociedade de mercado e convencer as grandes maiorias a construir outro sistema de organização humana. É preciso apoiar muito a autogestão, a cogestão, outro sistema de funcionamento empresarial, baseado na cooperação.
Onde há uma grande empresa é porque a cooperação humana funciona, impõe-se, mas não é um projeto individual. O melhor do capitalismo deve ser mantido. Em definitivo, a luta é para que o cidadão se aproprie responsavelmente do que está em jogo em sua vida, usufrua dos benefícios e sofra também as consequências de sua parcimônia.
Nos tempos atuais, o que implica ser rebelde?
Não seguir as chaves da cultura contemporânea. Sou filosoficamente destoante, uma espécie de neoestoico com definições terminantes.
- Pobre é aquele que precisa de muito.
- Se você precisa de muito, está frito, pois não vai conseguir nada.
- Ou, como dizem os aimaras: pobre é aquele que não tem comunidade.
Eu sou rico, tenho muitos companheiros e para viver tenho de sobra.
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Gabriel Díaz Campanella
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