
Lá está Ludwig Wittgenstein: a linguagem não serve apenas para descrever a realidade, usamo-la também para pedir um favor, para agradecer, para amaldiçoar, para saudar, para rezar…
E é preciso atender ao contexto, à situação, ao uso.
“Chove” pode dizer a constatação de um facto: está realmente a chover.
- Mas suponhamos que a mãe, pela manhã, quando o filho se prepara para ir para escola, lhe diz: “Chove”,
- ele sabe ao mesmo tempo que deve levar o guarda-chuva.
Se, numa família de agricultores, após uma seca prolongada, como agora,
- a mulher abre a janela e diz ao marido: “Chove”, é o contentamento que é dito.
- Mas, se estavam na expectativa de um passeio agradável e diz: “Chove”, é a desilusão.
A linguagem tem três funções principais:
- a expressiva,
- a apelativa
- e a representativa.
Essas funções têm que ver com as relações estabelecidas entre o emissor, o receptor e os objectos:
há alguém (emissor) que se dirige a alguém (receptor) para lhe comunicar algo, tornando presente a realidade.
- Há também a função fática, que tem apenas a missão de manter o contacto: “sim, sim…”, “pois…”, “claro…”.
- Quando alguém fala demais, vai-se tentando dizer que ainda se está lá a ouvir. Sabe Deus!…
Noutro sentido, é essencial a dimensão pragmática da linguagem.
Segundo alguns filósofos, deveria tender-se para uma linguagem artificial, lógico-unívoca, interessando apenas as dimensões
- sintáctica (a relação dos signos entre si)
- e semântica (relação dos signos com a realidade) da linguagem
- e o princípio verificacionista das asserções.
Mas, deste modo, esquecia-se a dimensão pragmática: falando, produz-se um efeito.
Pense-se, por exemplo, na promessa de casamento:
“Prometo e juro amar-te e ser-te fiel por toda a nossa vida”
produz o efeito que é o próprio casamento.
Esta dimensão foi sublinhada na Bíblia:
- Deus criou pela palavra, palavra eficaz. “
- Faça-se a luz”, e a luz apareceu.
Com a linguagem, pode-se arrastar multidões, levá-las à revolução, acalmá-las, exaltá-las, virá-las num sentido ou noutro.
A palavra cura. Uma vez, apareceu-me um homem com imensos problemas e apenas me pediu que o ouvisse, sem interrupção.
Falou mais de hora e meia e, no fim, agradeceu-me muito, pois não imaginava quanto o tinha ajudado, que nunca me esqueceria.
- Com algumas palavras, podemos abrir futuro a uma pessoa.
- Com algumas palavras, podemos destruí-la para sempre:
“És um burro, nunca farás nada na vida!”
Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só nos podemos compreender a nós próprios em corpo, com outros e na história.
O Homem, pelo facto de ser
- zôon lógon échon, animal que tem linguagem,
- é também zôon politikón, animal social, político,
- diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles na Política:
“A razão de o Homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o Homem, entre os animais, possui a palavra.”
E continua:
“A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais.
- Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto.
- E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações.
A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade.”
E é pelo diálogo (diá-lógon) que os conflitos se devem resolver.
A linguagem humana não se reduz à linguagem emotiva do prazer e do desprazer.
É capaz
- de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar
- e debater publicamente estas apreciações.
Deste modo, como sintetizou Gabriel Amengual, “por esta dupla função, a linguagem funda a ética e funda eticamente a pólis”.
Como faz falta voltar aos clássicos! Para acabar com a mentira e ir além da sofística…
Todos somos animais políticos e, consequentemente, responsáveis pela condução da pólis.
Estou de acordo com o Papa Francisco, com a observação de que, embora ele se refira só aos cristãos, o aviso é para todos:
“Envolver-se na política é uma obrigação para o cristão. Enquanto cristãos não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, pois procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. A política está muito suja, mas eu pergunto: “Está suja porquê?” Porque os cristãos não se meteram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros… Mas eu o que é que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever para um cristão.”
Escrevi aqui muitas vezes que considero a política uma actividade nobre, das mais nobres.
- Quando isso acontece no quadro do trabalho para o bem comum,
- antepondo o interesse comum aos interesses próprios e dos partidos.
Mas, sendo a política uma missão tão dura e exigente,
- quando observo a corrida tão interessada de tantos a cargos políticos,
- tenho de confessar, sinceramente, que não acredito que a maior parte o faça por amor à causa pública, ao serviço do bem comum.
Que interesses, que vantagens, que cumplicidades, que incompetências, que privilégios, que compadrios, que subvenções, que benesses, que vaidades os movem?
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/homem-o-animal-falante-e-politico-15387101.html
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