- A pressão escancarada de pastores bolsonaristas para que seus fiéis votassem no candidato de extrema-direita, derrotado nas urnas em 30 de outubro, pode levar a uma debandada de crentes incomodados com o jogo político pesado no interior da “casa de Deus”?
- Para além dessa questão recente no país, há algo na doutrina cristã que explica episódios como o apoio ao racismo nos Estados Unidos, ao apartheid na África do Sul ou à ditadura militar brasileira?
- Qual o peso e a influência dos líderes desse campo religioso que não compactuam com tal processo?
Responde Jung Mo Sung, Foto: Reprodução)
Naturalizado brasileiro, Sung nasceu em Seul, Coreia do Sul, em 1957 e radicou-se no Brasil em 1966. É membro do comitê científico do grupo de trabalho Class, Religion and Theology da American Academy of Religion.
Sung é utor de A idolatria do dinheiro e os direitos humanos (2018) e Desejo, mercado e religião(2000), entre outros
A entrevista é de Ricardo Whiteman Muniz, publicada por ComCiência, 03-11-2022.
Eis a entrevista.
Diante das pressões políticas e eleitorais no interior de igrejas evangélicas a favor do candidato de extrema direita, derrotado nas urnas em 30 de outubro após casos documentados de compra explícita de votos, uso e abuso da máquina pública e intimidação por parte de patrões e pastores, pode haver a partir de agora uma debandada das igrejas? A vertente evangélica do neofascismo traz embutido um “tiro no pé”, algo como “as coisas foram longe demais”?
Penso que a lógica e a teologia que gerou o grande crescimento das igrejas evangélicas e pentecostais é a mesma que está levando a esse seu caráter autoritário – prefiro esse termo do que neofascismo.
E o crescimento de um grupo aumenta também seus problemas e diferenças internas. Nesse sentido, o processo que você está chamando de “debandada” é previsível. O tempo vai dizer.
- O crescimento do pentecostalismo não pode ser entendido sem o uso dos rádios e das TVs , que têm um custo altíssimo e também o potencial de gerar superávits ou lucros.
- Só se pode manter esse sistema Igreja-TVs/rádios com a aumento de números de membros que contribuem financeiramente e a promessa e o “pagamento da benção econômica”, que fortalece uma “espiritualidade de consumo” e a acumulação de riqueza dos bispos proprietários das igrejas.
É importante deixar claro que
- o bispo proprietário da Igreja e do “canal das bênçãos”é e deve ser autoritário, pois ele ou ela representa o Deus-Poderoso na vida dos crentes.
- A aliança com Bolsonaro pode acabar na medida em que ele perde o poder que atrai os bispos e pastores.
- Mas o sistema já existia antes de Bolsonaro e vai existir depois.
Esse tempo de Bolsonaro é o ápice, por enquanto, de um sistema que tem uma certa coerência, mesmo que ética (ou teologicamente) equivocada.
É um sistema que, se entra, é muito difícil sair, pois é uma lógica sacralizada. Biblicamente eu poderia dizer que é um sistema econômico-religioso idolátrico. Mas para eles, divino.
Há algo no DNA da doutrina que intrinsecamente desemboca no autoritarismo, no fascismo, no racismo, na misoginia e no apoio a regimes de exceção, como ocorreu no Brasil com o apoio aberto das igrejas protestantes – salvo raras exceções – ao golpe de 64 e agora a Bolsonaro, chamado em muitas igrejas de “homem de Deus”?
Sua pergunta é muito importante mas difícil
- porque coloca em discussão um tema “metafísico”, não no sentido de que se trataria de algo que está além do mundo físico ou real, nem no sentido de discutir o “ser”em si– por exemplo, o ser do cristianismo –,
- mas sim sobre as condições de possibilidade de conhecimento e de funcionamento de um determinado sistema de pensamento.
Qualquer sistema social ou grupo social tem que resolver os problemas da produção e da reprodução da vida.
- Estar vivo é uma condição necessária para qualquer coisa e para isso precisa tomar decisões frente aos desafios e problemas que o seu meio ambiente natural-social coloca.
- Diante dos desafios, é preciso decidir qual ou quais caminhos a tomar.
- Normalmente é uma discussão técnica, no sentido moderno de definir qual é a melhor forma de usar os meios escassos para atingir os objetivos.
É o tema da eficiência do uso dos meios escassos.
Mas, o que não costumamos analisar e discernir
- é sobre o fim último ou os valores fundamentais que norteiam as opções concretas
- que levam os agentes ou atores sociais a fazerem ou não determinadas ações.
Nas décadas de 1950 a 70, o mundo estava claramente dividido entre o sistema capitalista e o comunista.
- No lado capitalista, não se discutia se o sistema de mercado capitalista era melhor ou pior do que o comunismo.
- Era claro ou óbvio que o mercado capitalista era o melhor ou o único modo de organizar a economia e a vida social para… Para quê?
- Não sabíamos bem qual era esse objetivo “final” do caminho.
Isso porque
- a utopia do capitalismo era o horizonte que dava e dá ainda o sentido das ações, das opções concretas no interior do caminho.
- Assim como no lado comunista, a utopia dava o horizonte de sentido para os planos econômicos e o controle do Estado sobre a vida social, isto é, seus objetivos específicos.
Sem a utopia não temos como ver e analisar se estamos melhorando ou piorando o que queremos fazer ou onde chegar. A noção de aperfeiçoamento pressupõe a ideia do perfeito.
- A noção do “mercado perfeito” ou do “Mercado (perfeitamente) Livre” é o que permite aos economistas neoliberais decidir suas escolhas políticas e econômicas e criticar outras propostas.
- Assim funcionava nos países do bloco comunista, com a noção de “Planejamento Estatal Perfeito”.
Esse processo de
(a) imaginar uma realidade utópica,
(b) analisar a partir dos conceitos transcendentais (por exemplo, Mercado Livre, Planejamento Perfeito, o Reino de Deus…) quais são os problemas, as suas causas e as soluções
(c) estabelecer os objetivos específicos e o seu caminho
é a condição de possibilidade de pensar e de atuar para nos mantermos vivos.
É disso que eu estou tratando como as “questões metafísicas”.
O mundo moderno, diferentemente do antigo ou pré-moderno, crê que seres humanos são capazes de atingir a perfeição ou o infinito.
- Acredita que a constante evolução tecnológica nos levará a alcançar a realização dos desejos infinitos, por exemplo, a riqueza ilimitada ou a vida além da morte corporal.
- É a ilusão de que com passos finitos poderemos chegar ao infinito, que Hegel criticou com a noção de “má infinitude”.
- Essa ilusão de que encontramos uma instituição humana capaz de nos levar ao “Paraíso”e que, portanto, se precisar devemos oferecer todos os sacrifícios necessários para chegar lá.
- A realização do desejo infinito requer e justifica todos os sacrifícios humanos.
Essa lógica sacrificial aparece
- no discurso econômico capitalista dos “custos/sacrifícios necessários” (dos pobres e trabalhadores, normalmente) para o crescimento econômico;
- no comunismo
- e também nas religiões, incluindo o cristianismo.
O que quero chamar atenção é que
- esse discurso sacrificial é resultado da ilusão de que
- é possível construir um sistema social ou instituição que nos levaria ao Paraíso,
- seja na terra ou na vida pós-morte.
Encontramos, por exemplo,
- no cristianismo medieval a doutrina de que a salvação é possível por meio de oferecer sacrifícios demandados pela Igreja em nome de Deus.
- Assim, a Igreja é vista como o caminho para chegar à vida eterna ou o chamado Reino de Deus.
- Com isso, identifica a Igreja com o Reino de Deus e a sacraliza.
No mundo moderno capitalista, com o seu mito do Progresso, e nos dias de hoje, vivemos na ilusão de que o Mercado Livre realizará o desejo ilimitado aos que “merecem”.
Em outras palavras,
- todos os sistemas sociais ou culturais que são capazes de se reproduzir
- têm dentro de si essa ilusão de realizar o desejo “impossível”
- por meio de uma instituição que, para isso, exige sacrifícios.
Na questão específica do cristianismo atual e a sua aliança com setores neoliberais e autoritários, é preciso agregar algumas outras questões.
A cultura de consumo, que surge nos países ricos do capitalismo na década de 1950, entra nas igrejas cristãs com uma nova teologia:
- Deus é favor do consumismo e as bênçãos divinas se manifestam publicamente por meio de ostentação de mercadorias-símbolos – a Teologia da Prosperidade.
- Há uma profunda inversão na compreensão cristã sobre o dinheiro e a ostentação do consumo.
Agora pobre não é objeto de caridade ou cuidado, mas é visto como pecador, amaldiçoado por Deus.
Além disso, com o aumento da concorrência no mercado profissional,
- os cristãos de classes média e baixa, com pouca formação educacional e técnica,
- buscam em Deus, isto é, na igreja, o “poder” para entrar e se manter no mercado consumidor.
Há nesse processo uma relação de troca:
eles pedem a benção na forma de poder de consumo em troca de uma vida cristã ativa, militante.
E qual seria essa militância religiosa tão poderosa que lhe garantiria essas bênçãos?
Antes da cultura de consumo, ser cristão militante era lutar contra o mundo moderno. Mas, a partir da década de 1970 a luta e os inimigos mudam.
- No lado da Teologia da Libertação e as Cebs (Comunidades Eclesiais de Base), com a opção pelos pobres,
- a injustiça social do capitalismo passa a ser “o” inimigo a ser combatido
- e para essa luta abraça as ciências sociais modernas e a política.
Por outro lado,
- há um outro setor do cristianismo que assume a ideia de que também os pobres têm o direito de uma vida melhor, mais próspera,
- valorizando o consumismo. Mas são pró capitalismo.
Para esse grupo, o principal agente de transformação da situação econômica é Deus
- e a principal ação da Igreja nessa caminhada não é lutar contra as injustiças do capitalismo, como é para a linha da Teologia da Libertação,
- mas lutar contra os inimigos de Deus.
Na medida em que essas igrejas abraçam a cultura de consumo, que é moderna,
- a benção divina, manifestada e comprovada no aumento da capacidade de consumo,
- é conquistada pela sua guerra espiritual contra os novos inimigos de Deus: os comunistas e os “gays”.
Os “comunistas” são inimigos de Deus
- não porque são ateus, pois acusam também cristãos que creem em Deus de comunistas,
- mas porque eles querem “dar”dinheiro aos pobres que são pecadores.
Ao dar dinheiro aos pobres e dizer que todos seres humanos têm direitos sociais,
- esses “comunistas” estão contra o modo como Deus distribui as “bênçãos”,
- isto é, o processo de distribuição de riqueza, a “meritocracia”, por meio do Mercado Livre.
Estabelece-se aqui uma identificação entre a benção distribuída por Deus e aideologia da meritocraciado mercado neoliberal.
E como essa guerra é espiritual, divina, é preciso, na mentalidade deles, o envio por parte de Deus de um ou “o” Messias.
O Messias enviado é, por definição na cultura religiosa desse tipo,
- uma autoridade que deve se impor sobre as leis humanas.
- A perspectiva da democracia se opõe à noção de messianismo, seja na direita ou na esquerda.
A luta contra os comunistas não é algo tão cotidiano, pois é uma figura meio abstrata.
Por isso,
- para se garantir como parte da comunidade ou da igreja que canaliza essas bênçãos de Deus,
- esses cristãos e cristãs precisam entrar na guerra espiritual contra aqueles e aquelas que ameaçam a família tradicional, patriarcal,
- que Deus teria criado: a comunidade LGBT+.
A figura mítica de Bolsonaro é a expressão de uma visão teológica que alia o neoliberalismo, o fascismo/autoritarismo, a cultura de consumo e uma religiosidade tradicional presente em muitas religiões do mundo.
O desejo de poder e influência de pastores por si explica o apoio massivo de evangélicos a Bolsonaro? Tudo se resume a isenção de impostos, concessões de TV e rádio?
As noções de poder e influência, que se expressariam concretamente em objetivos bem específicos como isenção de impostas e concessões, são importantes, mas penso que não dão conta dessa relação.
- Para entendermos um pouco mais a relação entre Bolsonaro e os pastores, eu penso que é útil discutirmos a questão do ressentimento.
- Uma questão central do ressentimento é o sentimento de que eu/nós não sou/somos tratados como merecemos e nos sentimos mal com isso.
Essas lideranças são vistas e tratadas com respeito e admiração pelos membros das igrejas e se sentem escolhidas por Deus.
O problema é que
- quando participam em eventos ou reuniões organizadas ou dirigidas por pessoas de formação ilustrada, isto é, com um discurso teológico e/ou político moderno ilustrado,
- são tratados como “menores”.
Isto é, são vistas e tratadas como pessoas
- que ainda não assumiram a “maioridade”,
- que ainda não estudaram a teologia moderna com a exegese moderna
- e usam uma linguagem religiosa tradicional para falar da vida e dos desafios da igreja e da sociedade.
Ao serem tratadas assim, de forma não respeitosa, essas lideranças e membros comuns das igrejas se sentem mal e se defendem ou se distanciam.
Pior ainda
- quando essas lideranças não são convidadas a participar em eventos públicos importantes em que gostariam de estar
- e de que se sentem com merecimento pela sua liderança.
O ressentimento se acumula.
Bolsonaro é aquele líder político que dá lugar especial a essas lideranças religiosas anti-modernas e expulsa aquelas que não os respeitam.
Penso portanto que a relação entre os pastores evangélicos e pentecostais com ele
- vai muito além da questão “material”dos impostos ou dos cargos,
- é uma questão de autoestima e ressentimento.
Qual é o real peso e influência de pastores dissidentes diante da onda neofascista no interior das igrejas evangélicas?
Com certeza os pronunciamentos de pastores, pastoras e lideranças pentecostais e evangélicas são muito importantes, tanto para a sociedade quanto para cristãos e igrejas menores.
Mas, é muito difícil medir e pesar. Isso só vai ficar mais claro daqui a um tempo.
Uma questão importante é: qual é a régua com a qual medimos esse processo?
- Eu penso que as categorias das ciências sociais e das ciências da religião modernas, as com que quase todos nós estudamos,
- não dão mais conta do mundo atual.
Por exemplo,
- a relação entre a religião e a política, ou a relação entre Igreja e Estado, mudou profundamente
- e as categorias usadas a partir da noção de secularização [processo em que a religião em geral perde influência sobre as variadas esferas da vida social] não são suficientes ou não apropriadas.
Pois, na verdade,
- fora da Europa o mundo não foi secularizado como os cientistas sociais pensavam.
- E a noção de sociedade pós-secular (Habermas) e a de “capitalismo como religião” (W. Benjamin, F. Hinkelammert)
- nos obrigam a repensar a relação entre a religião e a política.
O que podemos dizer agora é que esses pastores que, além da ação nas suas igrejas, atuam nas redes sociais têm um papel fundamental para que cristãos e cristãs possam resistir a essa onda autoritária e neoliberal.
é jornalista (Cásper Líbero, 2004), bacharel em direito (USP, 1993) e mestre em sociologia da religião (Metodista de São Paulo, 2000). …
Editou entre 2011 e 2017 a revista Ensino Superior (Centro de Estudos Avançados) e o site Inovação (2011-2013) da Unicamp. É coeditor executivo da revista digital ComCiência (parceria do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp com a SBPC). …
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