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Ivan Lago – 28 de fevereiro de 2020
O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro.
- Ex-integrante do Exército onde respondeu processo administrativo sob acusação de organização de ato terrorista;
- deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias;
- ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.
Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela.
Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.
Pelo contrário,
- como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido
- de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio,
- um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.
Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente
- não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”.
- Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.
No “mundo real” o brasileiro
- é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência… em quase tudo).
- É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.
Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país.
- Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades.
- Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.
O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas.
Mas ele sobrevive
- no imaginário da população, no cotidiano da vida privada,
- nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho,
- nas redes sociais, nos grupos de whatsapp,
- nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”,
- nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.
O mesmo ocorre
- com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais.
- Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição.
É por isso que o politicamente correto, por aqui,
- nunca foi expressão de conscientização,
- mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.
Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais,
- foi menos por superação cultural do preconceito
- do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.
Mas, como sempre ocorre
- quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo.
- Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar.
Como aquele desejo do menino piromaníaco que era obcecado pelo fogo e pela ideia de queimar tudo a sua volta, reprimido pelo controle dos pais e da sociedade.
Reprimido por anos,
- um dia ele se manifesta num projeto profissional que faz do homem adulto um bombeiro,
- permitindo-lhe estar perto do fogo de uma forma socialmente aceitável.
Foi algo parecido que aconteceu
- com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos,
- que viu em um candidato à Presidência da República essa possibilidade de extravasamento.
Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país,
- alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa,
- mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.
Agora esse “cidadão comum” tem voz.
- Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos.
- Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente.
- Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.
Esse cidadão se vê empoderado
- quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais,
- pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas.
- Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.
Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê.
Ao contrário,
- ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um,
- que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer,
- que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.
O “brasileiro médio” não entende patavinas
- do sistema democrático e de como ele funciona,
- da independência e autonomia entre os poderes,
- da necessidade de isonomia do judiciário,
- da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional.
É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos
- quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF,
- instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias.
Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.
Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre;
- ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada,
- e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.
O “brasileiro médio”
- gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal,
- condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes,
- tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena.
Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade.
- Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura,
- mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.
Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes.
Por isso
- não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo
- e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população.
A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo.
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Ivan Lago
Fonte: https://ivannlago.blogspot.com/2020/02/o-jair-que-ha-em-nos.html
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