
A antropologia é uma tarefa sem fim. De facto, o Homem não pode definir-se de uma vez por todas. Nem sequer há definição possível do Homem, pois ele é uma abertura ilimitada: por mais que diga de si nunca se diz plena e adequadamente.
A pergunta pelo Homem convoca todas as disciplinas.
Não é ele, de facto, como bem viram Aristóteles e Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas?
Quando questionamos: “O que é que eu sou?, quem sou?”,
- é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza,
- da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia…
Segundo o filósofo e teólogo Juan Masiá, pode-se tentar uma Antropologia Filosófica partindo de algumas afirmações de base enquanto outras tantas perguntas.
Assim:
- Eu sou eu a partir da natureza, mas precisamente deste modo: eu sou parte da natureza enquanto pessoa e eu sou pessoa enquanto parte da natureza.
- Provenho da natureza, mas transcendo a natureza: em mim, a natureza e a sua história sabem de si.
Impõe-se, pois, o diálogo com as ciências da natureza e as filosofias personalistas.
Eu sou eu na minha circunstância.
Portanto,
- eu sou no mundo, eu sou espácio-temporalmente, ao mesmo tempo que transcendo e tento sempre transcender o espaço e o tempo.
- Neste âmbito, são imprescindíveis os contributos das antropologias culturais, da sociologia, das psicologias evolutivas, da história, da linguística.
Eu sou eu a partir do meu corpo, mas de tal modo que nunca sei adequadamente quem sou.
- Como é que de um corpo acabado de nascer vai emergindo um eu,
- como é que o corpo se faz sujeito, que vai lentamente tomando consciência de si?
Neste quadro, dialoga-se com as antropologias biológicas, com as fenomenologias existenciais.
- Eu sou eu a partir de mim e perante a realidade.
- Eu sou eu, mas de tal modo que o segundo eu exprime a possibilidade que uma pessoa tem de autoobjectivar-se e reconhecer-se.
O ser humano afirma-se a si mesmo na reflexão.
E não é um mero animal de instintos, pois vive na realidade:
- é um animal de realidades, como sublinhava Zubiri,
- distinguindo bem entre o imaginário, o que é objecto de desejo e o real.
Apesar dos seus limites, encontraremos aqui concretamente as antropologias racionais e reflexivas.
- Eu não sou eu de modo fixo, dado de uma vez para sempre, pois eu vou sendo eu, ao sair de mim.
- A pessoa não é encerrando-se em si mesma. Pelo contrário, é saindo de si que vem a si e se encontra.
- O ser humano só é na relação.
O ser humano vive mesmo este paradoxo: só porque é abertura a tudo é que é intimidade pessoal e única.
- Precisamente nessa abertura sem limites, o Homem experiencia-se enquanto liberdade, ainda que sempre liberdade em situação.
- Aqui, entram os contributos das psicologias evolutivas e sociais, das filosofias do conhecimento, do amor, da práxis, da história.
Eu não sei se sou eu. Serei eu?
Acontece por vezes o ser humano olhar para o que fez e perguntar: fui eu que fiz isto?, como foi possível?, aí não era eu.
É, pois, inevitável o confronto com os desafios da psicanálise, dos estruturalismos, das neurociências, da sociobiolgia.
Eu ainda não sou eu, mas vou-me tornando eu e sou mais do que eu, eu sou o que serei para lá de mim.
- O Homem é um ser temporal, vai-se fazendo historicamente.
- O ser humano é simultaneamente um ser que sabe da sua morte inexorável e que constitutivamente espera para lá a morte.
- O ser humano não é ainda, vai sendo e quer ser em plenitude: espera assim a sua realização para lá da história intramundana.
A antropologia desemboca assim
- em perguntas pela ultimidade,
- questões da constituição metafísica do real
- e da conexão entre ética, esperança e religião.
Aqui chegados, é ainda necessário reconhecer
- que estas afirmações-perguntas formuladas na primeira pessoa do singular
- têm de apresentar-se no plural, pois o Homem só é real e autenticamente na relação,
- a identidade individual implica a identidade social e histórica e planetária e cósmica.
Mas o Homem é sobretudo, para lá de tudo, o ser da pergunta, no sentido radical, dito no étimo da palavra – pergunta vem do latim: percontare, que contém contus, um pau comprido com o qual se remexe um tanque até ao mais fundo (o que há lá no mais fundo?)
De pergunta em pergunta, o Homem vai até ao infinito e pergunta ao infinito pelo infinito, ou seja, por Deus.
Deste modo, como escreveu José Gómez Caffarena, mantendo
- “a nossa condição irrenunciável de sujeitos – não só de conhecimento, mas também de acção, de valoração moral, estética, de decisão… -,
- renascerá sempre para nós, nessa perspectiva, a pergunta pelo sentido global da existência”.
Por outro lado, é claro que esta pergunta pelo sentido global e último não é desvinculável da pergunta por Deus.
O filósofo agnóstico Leszek Kolakowski disse-o de forma contundente:
- “Se Deus morreu, não resta senão um vazio carente de sentido que nos engole e aniquila.
- Não fica rasto da nossa vida nem das nossas obras; fica apenas a dança irrelevante de protões e electrões.
- O universo não quer nada nem se preocupa com nada; não tende para nenhum objectivo; não premeia nem castiga.
- Quem disser que Deus não existe nem faz falta está enganado.”
O núcleo dos dias 1 e 2 de Novembro é esta pergunta pelo sentido, o sentido último, Deus.
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Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/1-e-2-de-novembro-a-pergunta-pelo-sentido-15297247.html
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