Entrevista com Rosana Pinheiro-Machado
Luciano Velleda – 28 Outubro 2022
Foto: Bolsonaro e seus apoiadores / DAQUI
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado analisa o surgimento e as consequências do bolsonarismo num país com as características do Brasil. Rosana é Professora titular da University College Dublin, na Irlanda. Ela tem se dedicado a dirigir o WorkPoliticsBip, laboratório que investiga o nexo entre precariedade e extrema-direita no Sul Global.
A entrevista é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 26-10-2022.
Eis a entrevista.
Por que você não acha correto chamar Bolsonaro de “Trump dos Trópicos”?
Rosana Pinheiro-Machado / Foto: Tweet
- O problema é que quando a gente pega a expressão “Trump dos Trópicos”, a gente está pensando que o Bolsonaro é uma variação de algo que acontece nos Estados Unidos.
- Concordo sobre a importância de entender tudo em que Bolsonaro se inspira e copia, tanto do Trump como dos think tanks dos Estados Unidos, todo o ecossistema americano.
O problema, sob a perspectiva do Sul Global, é que o bolsonarismo tem impactos muito mais violentos se a gente pensar que é uma continuação do processo histórico brasileiro de autoritarismo e do conservadorismo.
- A democracia foi exceção por 40 anos, mas com o conservadorismo e o autoritarismo entranhado na alma das pessoas,
- a gente fica revivendo uma continuidade com novas roupagens de um processo histórico. Claro que com novas roupagens tecnológicas e ideológicas muito mais ferozes.
Mas se a gente pensar que o Bolsonaro é um “Trump dos Trópicos”, a gente não está pensando nas consequências, no Brasil, onde a democracia é muito mais frágil.
- As consequências de uma extrema-direita aqui são muito mais violentas.
- O que acontece no Brasil em termos de gênero, perseguição de professores, o que está acontecendo na Amazônia, é incomparável.
Talvez o Brasil seja o caso mais radical hoje da extrema-direita no mundo.
O Brasil é um país fundado em 300 anos de escravidão, ditaduras, muita violência, e apesar disso se criou a ideia do povo amistoso. A gente se enganou com essa ideia e Bolsonaro surge para dar voz ao sentimento violento de uma parcela da população que nunca deixou de existir?
A gente acreditou e vendeu a ideia de democracia racial e a exportou.
E isso vem num processo
- de constituição da nação brasileira
- de apagamento da violência,
- de apagamento de uma história que é feita na escravidão,
- no estupro de mulheres negras, na tortura de homens negros e no dizimamento indígena.
Alguns elementos dessas populações, principalmente negras,
- foram apropriados como elementos de cultura nacional, desde a era Vargas,
- mas sem fazer a devida reparação histórica.
A gente pega um elemento da cultura e transforma isso num processo de pura violência, que é o apagamento da própria violência.
O Brasil
- sempre dizimou a população indígena,
- é um dos países que mais mata jovens negros no mundo,
- é o país que tem o quarto maior número de feminicídios no mundo
- e é o país que mais mata pessoas trans no mundo.
E sempre foi isso.
E o Bolsonaro
- representa essa parte do conservadorismo que tem uma identidade muito forte,
- e do autoritarismo, porque são as duas coisas juntas.
- E cria esse novo movimento que hoje está muito coeso e que, enfim, nunca foi sobre democracia racial.
É possível incluir nessa análise a falta de uma Justiça de Transição no processo de redemocratização do Brasil nos anos 1980 e 1990? Ao contrário de países vizinhos, o Brasil nunca puniu os responsáveis pelos crimes da ditadura, o próprio Exército nunca foi responsabilizado e até hoje vigora a ideia de que os militares são eficientes.
Sim, 100%.
É muito diferente da memória da ditadura que se tem no Chile e na Argentina, por não ter feito um processo de Justiça de Transição.
Isso permite
- que a memória seja apagada, que é o mais grave,
- permite que milhões de pessoas no Brasil achem que a ditadura foi boa ou ‘não foi nada disso’.
E isso se reflete na falta de currículos de como é ensinada a ditadura, porque milhões de pessoas não estudaram isso.
Não foi um fato punido, em que as pessoas foram trabalhadas como criminosas.
Então
- se faz uma transição em que tudo é apagado,
- a gente faz as pazes, todo mundo recebe anistia
- e o impacto disso vai ser uma visão idealizada da ditadura militar. Ou simplesmente apagada.
E isso faz com que o atual presidente, no dia em que vota para o impeachment (de Dilma Rousseff, em 2016), diga que faz em nome do [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi um dos torturadores mais perversos da história do Brasil.
Muitas pessoas nas periferias achavam que só o Exército poderia trazer ordem para o País de novo.
- E não eram pessoas ligadas à família de militares, eram pessoas que achavam isso mesmo,
- às vezes até no sentido de trazer valores que são positivos em termos de ser contra a violência.
- E isso abriu margem para o novo militarismo.
Assim como na ditadura, o inimigo hoje também é o mesmo, o comunismo. Como se lida com isso em 2022?
- É uma obsessão que as pessoas têm, uma coisa arraigada, um medo desesperado em nome de uma ditadura comunista
- e, em nome disso, aceitando outras formas de ditaduras que são sanguinárias e que fazem exatamente o que as pessoas teriam medo numa ditadura comunista.
A ameaça do comunismo é uma mentira, mas a ameaça do fascismo é uma realidade.
- Isso no fundo reflete o pavor dos princípios mais igualitários
- numa sociedade calcada no autoritarismo
- e numa lógica extremamente individualista.
E também o velho horror aos pobres, porque o comunismo é a fantasia de que todo mundo vai ser pobre.
As formas de comunicação hoje mudaram radicalmente e estão no centro da disputa política, com o bolsonarismo sendo muito eficiente. Como enfrentar essa nova realidade e os influenciadores nas redes sociais?
Participei de um seminário na embaixada da Espanha chamado “Desafios da comunicação política”, com os maiores especialistas do mundo, e ninguém sabe como fazer.
A extrema-direita sempre teve, de alguma maneira, o monopólio dessa comunicação porque a lógica autoritária e simplista age por medo e fake news. O rádio teve um papel fundamental e ainda tem.
- E mesmo que o rádio não seja bolsonarista, é o dia inteiro noticiando problema, morte, assassinato, roubo e aquilo vai gerando um ódio na pessoa, uma raiva do mundo.
- E as redes sociais elevaram isso numa potência inimaginável, com a desinformação descarada como projeto e numa evolução muito rápida,
- porque a gente não conseguiu vencer as fake news do WhatsApp.
E o ecossistema vai mudando por diferentes redes. Podcast, TikTok, Instagram… não era decisivo, nem existia tanto. E a gente está correndo atrás.
A tua pergunta sobre como fazer… eu não sei, a gente sempre diz que
- tem que disputar,
- tem que ser um projeto contínuo da esquerda, não só durante a eleição.
O mundo não vai ser mais como era antes e a gente vai ter que aprender.
Alguns defendem que o campo progressista use os mesmos métodos, o que lhe parece?
Sou absolutamente contra a ideia de copiar as táticas deles, tenho medo que isso aconteça.
- A gente vê algumas pessoas defendendo isso em nome de um “bem maior”,
- mas isso é a lógica deles, porque eles também acreditam que é para um “bem maior”.
Existe a importância de disputar as redes e regulamentar as redes, no sentido de haver algum controle sobre conteúdos violentos e criminosos. Não pode neonazista falar como fala hoje.
Também tem fatores socioeconômicos.
Tem que avançar
- para uma sociedade com maior distribuição de renda e igualdade,
- com menos desigualdade para que as pessoas sejam menos contagiadas.
Esse fenômeno veio para ficar, não tem como parar. Tem que transformar a sociedade para que as pessoas sejam menos vulneráveis.
Todas as pesquisas do mundo mostram que quanto mais desigualdade, mais penetração da extrema-direita.
Isso se relaciona com a impressão de que nada “cola” no Bolsonaro, não importa o que ele faça ou fale?
O bolsonarismo foi criando uma identidade tão forte que não é mais sobre valores, é sobre a reafirmação do seu próprio conservadorismo.
Bolsonaro pode fazer qualquer coisa que as pessoas vão dizer que é mentira ou que não importa.
- Esse é um processo de psicologia de massas e de antropologia,
- de criação da identidade do “nós contra eles”
- que é primário na formação de estar no mundo.
Se você está com Bolsonaro e você vai reafirmando, reafirmando, vai passando por diversas pautas, é sobre pertencimento, sobre um lugar no mundo e reafirmar a própria verdade.
Independente de quem vencer a eleição, tudo indica que será por uma diferença pequena e o Brasil sairá dessa eleição como uma sociedade muito fraturada. Como você analisa o futuro do País nas condições de uma sociedade muito dividida?
Acho que nos próximos anos irá se manter essa fratura, é um processo que veio para ficar, não tem o mínimo sinal da gente sair disso. O Brasil vai ser esse por muito tempo.
É revolucionário o processo, no sentido de que é o fim de uma ideologia que acreditou na democracia racial.
- Acho que o bolsonarismo sai até mais forte dessa eleição, mesmo perdendo, porque demonstrou ser resiliente e está cada vez mais coeso.
- Nunca vi a força do bolsonarismo tão forte como agora.
- Antes tinha um núcleo duro de 20%, agora o núcleo duro cresceu demais, é praticamente todo mundo que vota com o Bolsonaro.
Na hipótese do Lula ganhar,
- que com suas alianças ele consiga falar com outros setores, inclusive do empresariado, com a elite econômica,
- porque ele vai precisar mais do que nunca de amplas alianças para conseguir governar.
Se não começar a ter melhoras muito rápidas, com resultados… e mesmo com resultados, as pessoas vão dizer que não existe o resultado.
Vão ser anos muito duros. Se a sociedade avança, vão dizer que não está avançando. Assim como hoje tem uma crise econômica e se diz que não, que o País está crescendo.
A gente está vivendo num mundo paralelo.
.
Luciano Velleda
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/623417-talvez-o-brasil-seja-hoje-o-caso-mais-radical-da-extrema-direita-no-mundo-entrevista-com-rosana-pinheiro-machado
Leia mais:
- A renovação da esperança dos frustrados. Entrevista especial com Rosana Pinheiro-Machado
- “Grupo contra Bolsonaro incomoda por causa de seu potencial”, diz Rosana Pinheiro-Machado
- “Esfaqueou, querem que eu faça o quê?” Atentado a Bolsonaro é o ápice insano da polarização. Artigo de Rosana Pinheiro-Machado
- Do lulismo ao bolsonarismo. Entrevista especial com Rosana Pinheiro-Machado
- Esquerda e direita disputam regimes de verdade. Entrevista especial com Rosana Pinheiro-Machado
- Como fica o bolsonarismo depois da eleição?
- A sombra tenebrosa do bolsonarismo. Artigo de Leonardo Boff
- O ‘Brasil profundo’ está cada vez mais distante da esquerda e é atraído pelo bolsonarismo
- Articulação de grupos e partidos da extrema direita global trabalha por Bolsonaro
- A força do bolsonarismo nas redes: repercussão de entrevista mostra eficiência e engajamento
- “Derrotar Bolsonaro nas urnas não acabará com bolsonarismo”, afirma Marcos Nobre
- A derrota de 7×1, o despertar do bufão da extrema-direita e a emergência da virada com afetos positivos. Entrevista especial com Paolo Demuru
- Extrema-direita e neonazismo: muito mais do que “discursos de ódio”
- “É a extrema direita que está melhor posicionada para aproveitar o descontentamento global”. Entrevista com Walden Bello
- Extrema direita: religião, militarismo e neoliberalismo. Artigo de Robson Sávio Reis Souza
- Extrema direita: pautas moralistas unem religião e militarismo. Artigo de Robson Sávio Reis Souza
- “Combater a extrema direita não é só uma questão de discurso, é preciso organização”. Entrevista com Nuria Alabao
- Extrema-direita no Brasil já não precisa de Bolsonaro para se mobilizar, revela pesquisa
- Desinformação não é jornalismo, diz nota em apoio à decisão do TSE contra a Jovem Pan
- No dia da eleição brasileira, a desinformação prosperou – patrocinada pelo Google
- A desinformação que viralizou no primeiro turno
- As hienas do mercado financeiro e os aloprados bolsonaristas: as eleições brasileiras sob ataque calculado
- Eleições 2022. Carta dos Jesuítas em formação em Belo Horizonte a toda a Província dos Jesuítas do Brasil
- Eleições 2022: Comissão Sociotransformadora da CNBB divulga Carta ao Povo Brasileiro
- Eleições e perversão religiosa. Artigo de Francisco de Aquino Júnior
- Eleições 2022. O futuro do Brasil está em disputa. Entrevista especial com Lucas Pedretti Lima
- Uso da máquina pública nas eleições e o abalo das estruturas da democracia. Artigo de Marcelo Aith
- Eleições 2022: a escolha entre a barbárie ou a democracia e os direitos humanos. Entrevista especial com Luiz Carlos Bresser-Pereira
Leave a Reply