OUTRASAÚDE – SAÚDE E DESIGUALDADE

Fique com a entrevista completa.
O Brasil passa fome mesmo sendo um dos maiores produtores de alimento do mundo. Como foi possível chegarmos nesse ponto?
Rosana Salles-Costa / Foto: Reprodução
Esse processo na verdade não é de agora.
- A gente observou toda uma melhora até o ano de 2013, 2014, quando a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) coloca que o Brasil saiu do Mapa da Fome.
- Mas a última pesquisa nacional, que foi feita em 2017 e 2018, e na pesquisa de orçamento familiar divulgada em 2020 já mostravam essa tendência de o Brasil retomar à fome com proporções muito elevadas.
Com a pandemia, a situação só se agrava. Não só no Brasil, mas nos países capitalistas como um todo.
A grande questão é que aqui, mesmo diante da pandemia,
- a única política efetivamente adotada foi o Auxílio Emergencial.
- Que foi importante, mas não foi estrutural para que a gente pudesse estancar a sangria do aumento da fome na população brasileira.
A fome que é captada pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) reflete principalmente o acesso à alimentação em quantidade e de qualidade.
- É possível ver a relação da fome com todas as desigualdades que infelizmente a população brasileira vem sofrendo de 2015 para cá.
- Essas desigualdades estão relacionadas à desaceleração e depois à interrupção mesmo das políticas voltadas ao segmento mais vulnerável da população brasileira.
Foi uma sequência de fatos.
- A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) no primeiro dia do atual governo,
- e depois a suspensão das outras políticas de combate à fome e à miséria do país.
- Mas a fome captada pela EBIA está muito relacionada a essa discussão da renda na população brasileira.
Não se trata apenas das políticas de combate à fome, mas também das que reduzem a desigualdade social no nosso país.
Quando a pandemia chega, acontece
- a perda de empregos, a redução do poder do salário mínimo,
- o aumento do preço do alimento – que foi aquela disparada a partir do segundo semestre de 2022 –
- o aumento do gás, do combustível, da luz elétrica.
Houve o aumento de todas as contas, com exceção do salário mínimo da população brasileira.
O Brasil é produtor de grãos em escala significativa dentro da América do Sul, da América Latina, até mesmo no mundo.
- A gente não deveria ter esse problema. Só que a produção de alimentos, inclusive a carne, no nosso país
- é feita principalmente visando a exportação.
- A gente tem sistemas alimentares globalizados e o Brasil adota os modelos visando o comércio externo.
Então, mesmo com muito alimento, grãos, pecuária, aves e tudo mais, essa produção não é para a população brasileira.
- Por incrível que pareça, o abastecimento dos mercados é feito pelos pequenos produtores.
- A alimentação escolar vem do da agricultura do entorno das cidades.
A fome é um problema do país como um todo, não mais restrita às áreas rurais. O Sudeste, por exemplo, tem os maiores números totais de pessoas com insegurança alimentar, embora o Norte e o Nordeste concentrem as maiores proporções. Como o problema se espalhou dessa maneira?
É claro que o sul do Brasil, até por questões históricas da nossa colonização e toda a estrutura do país, tem menos vulnerabilidade à fome. Tem menos insegurança alimentar grave.
As regiões que mais pobres do Brasil são o Norte e o Nordeste, continuam sendo.
- Porém, com a urbanização, as pessoas se concentram principalmente nos grandes centros urbanos.
- Ali, a renda proveniente do emprego é muito importante para aquisição dos alimentos, principalmente da subsistência.
- Isso faz com que as famílias como um todo acabem sendo mais vulneráveis à fome.
As grandes cidades têm a questão forte da desigualdade. E as políticas sociais estão todas fragmentadas, por exemplo, o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o Programa Nacional da Alimentação Escolar.
Houve o corte do orçamento para a alimentação das escolas.
Então, o que que acontece?
- As famílias que estão nos grandes centros ficaram sem emprego ou voltaram ao emprego com menor salário.
- Elas acabam se endividando muito mais.
- A população dos centros urbanos está empobrecendo.
Na área rural também houve o aumento da fome. Só que o pequeno produtor pode, por exemplo, produzir para si mesmo.
- Ele não tem acesso a alguns alimentos,
- mas ao menos consegue garantir alguma parte básica da alimentação.
- Isso é até uma coisa que a gente observou na pesquisa familiar de 2018.
E tem a questão da qualidade da alimentação.
- As famílias, quando ganham dinheiro, elas precisam comprar alimentos para serem armazenados,
- pois não sabem quando vão ter dinheiro novamente.
- Antigamente, isso era garantido no arroz, no feijão, no óleo, na farinha, na farinha de mandioca.
- Mas o consumo desses alimentos começou a reduzir. Isso se observa também por causa da redução do preço do produto ultraprocessado.
Esse alimento ultraprocessado é rico em energia, ele é pobre em nutrientes.
- Ele dá uma sensação de saciedade.
- E diante da escassez de dinheiro, as famílias acabam fazendo escolhas.
- Não é que elas não saibam que frutas e vegetais são importantes para a alimentação, elas sabem.
- Mas os preços estão aumentando progressivamente, a cada semana.
O Brasil registrou, em 2021, o maior número em 14 anos de internações de bebês por desnutrição. De que maneira a fome na infância afeta essa população?
A gente já não via isso há muito tempo. Eu trabalho na UFRJ há quase trinta anos, então já trabalhei muito em centros comunitários, em ambulatórios comunitários
- A gente via a fome, via o déficit de desenvolvimento.
- Mas nos últimos tempos isso estava sendo reduzido.
- E agora as crianças estão sendo internadas por desnutrição novamente.
Trabalhei no interior de São Paulo, no início dos anos 1990, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Lá a gente atendia muitas crianças desnutridas. E agora a gente volta a ver coisas que não imaginava que poderiam acontecer de novo na população brasileira.
Isso é uma coisa muito preocupante, porque
- mexe com a saúde, com o desenvolvimento cognitivo dessas crianças.
- Mexe na qualidade do aprendizado dela futuramente, quando elas forem pra escola.
Essas crianças têm propensão a terem atrasos no desenvolvimento motor, a desenvolverem doenças infecciosas e outras complicações, e inclusive aumenta a chance de obesidade no futuro.
Num possível novo governo a partir de 2023, o que precisa ser feito de imediato e a longo prazo para resolver o problema da fome?
Essa é a grande questão que temos debatido.
- A curto prazo, é preciso que o governo assuma a pauta de que fome existe.
- Não dá para negar. Esse é mais um negacionismo que a gente enfrenta.
- A fome existe, está nas esquinas das nossas casas.
Assumido isso, é sentar e conversar com os estados, porque essa distribuição regional tem diferenças importantes.
De forma imediata, precisamos nos perguntar:
- valor do Auxílio Brasil é o suficiente?
- Então vamos tentar olhar para o preço dos alimentos?
- Vamos ver o que é possível fazer para diminuí-los?
É preciso retomar os restaurantes populares. Isso é muito importante. É uma política de combate à fome, uma ferramenta muito importante.
- Porque oferece uma alimentação de qualidade a um preço reduzido – um, dois reais no máximo. E é preciso oferecer não só o almoço.
- Vamos trabalhar para que esses restaurantes populares sirvam café da manhã.
- Vamos trazer o pequeno produtor para vender o seu produto para o restaurante popular.
Isso mexe com a questão emergencial e também com a produção, na economia local dessas regiões.
Vamos
- acionar as cozinhas comunitárias, para ver como abastecê-las
- Treinar as famílias para a troca de mão de obra: você trabalha, ajuda a preparar o alimento para sua própria comunidade e pode levar um pouco pra sua casa.
Tem experiências muito exitosas nesse sentido.
Fora isso,
- é necessário assumir uma pauta de governo que volte a olhar para o segmento mais vulnerável da população brasileira.
- É preciso rever a política econômica.
- Acabar com a política econômica que mantém o salário mínimo congelado paralelo ao aumento dos preços de alimentos, da conta de luz, água e tudo mais é uma política econômica que não funciona.
Cria-se uma população que nem sobrevive e não consome. Essa é uma grande questão.
E a retomada.
O terceiro ponto que a gente tem discutido muito é a retomada das políticas de combate à fome.
- A retomada do Programa de Abastecimento de Alimentos.
- O Programa de Cisternas no Nordeste também é muito importante para garantir a qualidade da água.
- O acesso à água está muito relacionado à fome.
Rever
- se a política de transferência de renda como está é suficiente.
- Fazer a retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do nosso país,
- fazer articulação com as lideranças, em trabalho conjunto.
Uma coisa essencial agora é olhar para as políticas de redução das desigualdades, para as pessoas mais vulneráveis, na ótica da desigualdade racial e da desigualdade de gênero.
- Essas políticas estão completamente esquecidas, principalmente a desigualdade racial.
- Essas políticas não são mais observadas e a saúde dessa população está muito comprometida.
- Também é preciso olhar para o Sistema Único de Saúde.
É todo um trabalho em conjunto: saúde, alimentação, qualidade da água.
É preciso voltar a este olhar pela população brasileira, como já foi feito.
- A gente não saiu do mapa da fome em 2013 por acaso.
- No Brasil, também se pensava para o segmento de empregos.
- É preciso retomar a valorização do salário mínimo.
Não tem como ser uma saída individual, é preciso
- trabalhar no coletivo,
- conversar com as lideranças,
- conversar com os municípios, os estados, prefeitos.
Porque senão a gente não vai conseguir. A gente não vai resolver essa questão a curto prazo, mas é preciso interromper o aumento da prevalência da fome.
.
Gabriela Leite
Fonte: https://outraspalavras.net/outrasaude/como-o-brasil-pode-superar-a-fome/
Leave a Reply