O lema “Deus, Pátria e Família“, citado por Jair Bolsonaro em inúmeros discursos desde a sua campanha de 2018, ganhou um quarto elemento na disputa eleitoral deste ano. Os atuais materiais de campanha do presidente usam: “Deus, Pátria, Família e Liberdade”.
Nesta terça-feira (11/10), em Balneário Camboriú (SC), ele afirmou:
“Temos a obrigação de lutar pela liberdade”.
Seus apoiadores também citam o termo com abundância. O empresário Roberto Justus divulgou um vídeo no qual se define como um “liberal na essência” e declara apoio a Bolsonaro por ele ser o candidato que“luta pela liberdade individual”.
Para completar, o atual partido do presidente se chama Partido Liberal (PL).
A defesa da liberdade no bolsonarismo também aparece ligada
- à flexibilização do acesso às armas
- e como reação a decisões judiciais que puniram apoiadores do presidente por ataques às instituições democráticas e a ministros do Supremo Tribunal Federal.

Campanha de Bolsonaro incluiu “Liberdade” no mote “Deus, Pátria e Família” que vinha sendo usado pelo presidenteFoto: Jair Bolsonaro/Facebook
Tripé liberal desrespeitado
Seria o uso do conceito de liberdade pelo presidente compatível com seus constantes ataques
- à liberdade de imprensa,
- à separação entre os Poderes
- e à liberdade de escolhas individuais, inclusive sexuais e de gênero,
que fundamentam o liberalismo?
A associação Livres, que promove os valores do liberalismo no Brasil e reúne em seus quadros os economistas Pérsio Arida e Elena Landau, entre outros, afirma que não.
Mano Ferreira, diretor de comunicação do grupo, diz que
- o liberalismo, uma ideologia política e econômica que teve seu ápice no século 19, é representado no mundo contemporâneo por três pilares:
- democracia liberal, economia de mercado e sociedade aberta e tolerante.
O que se vê na campanha do presidente, segundo ele, é apenas um desses aspectos, o econômico – e, mesmo assim, de forma deturpada.
Ele diz que
- o melhor teste para avaliar o compromisso de uma pessoa com o liberalismo não é checar se ela defende a própria liberdade ou a de seu grupo,
- mas a liberdade do outro.
Esse preceito é resumido numa frase do historiador abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), inspirador do Livres, de que é necessário cultivar o “amor da liberdade alheia”.
O atual presidente não passa nessa prova, afirma Ferreira.
- “No discurso bolsonarista, há a evocação da liberdade para defender o grupo do próprio presidente,
- mas existe pouco compromisso com a liberdade do outro, de quem discorda.
- O Bolsonaro traz construções como a ideia de que a minoria deve se curvar à maioria ou desaparecer, um tipo de ideia profundamente antiliberal.”
Ficam de fora do discurso do presidente, diz,
- a liberdade de imprensa,
- a liberdade sexual e de gênero
- e o respeito à separação de Poderes e ao sistema de freios e contrapesos da democracia liberal, entre outras.
- com exceções pontuais como a aprovação da Lei da Liberdade Econômica,
- que reduziu a burocracia para a abertura de empresas,
- e do marco legal do saneamento, que ampliou a competição no setor.
No geral, diz,
- a gestão do presidente violou os valores do liberalismo ao “demonizar a divergência”
- e na sua agenda de políticas públicas, como no Ministério da Educação,
- na criação e ampliação de benefícios sociais às vésperas da eleição
- e nos repetidos ataques ao sistema eleitoral que ferem por consequência a liberdade política da população.
O Livres apoiou neste ano 59 candidatos a cargos eletivos, e elegeu um deputado federal, Alex Manete (Cidadania-SP) e dois deputados estaduais, Emerson Jarude (MDB-AC) e Cibele Moura (MDB-AL).
Tem ainda um candidato a governador no segundo turno, Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), e uma candidata a vice-governadora, Priscila Krause (Cidadania-PE).
A associação não se posiciona sobre a disputa ao segundo turno para presidente.
Brasil tem tradição de conjugar liberalismo e autoritarismo
O liberalismo foi utilizado em muitos países nos séculos 18 e 19 como base teórica de movimentos
- que derrubaram regimes baseado na nobreza
- e criaram estados mais enxutos, que garantissem a liberdade privada e a segurança dos cidadãos.
No Brasil, esse processo ocorreu de forma peculiar, como um “liberalismo conservador”, diz o sociólogo Fábio Gentile, professor da Universidade Federal do Ceará e autor de um artigo acadêmico que analisa a tensão entre liberalismo e autoritarismo ao longo da história do país.
O próprio processo de Independência, cita, foi dirigido por uma oligarquia, que outorgou a nova Constituição.
“Não teve uma burguesia que fez uma revolução de baixo e chegou ao poder, criando o Estado e os direitos.”
O liberalismo foi um mote da Independência, mas não estruturou um pacto político liberal, nem era associado à ética burguesa da livre iniciativa. Durante algumas décadas, o Brasil teve autodenominados liberais que defendiam a liberdade de ter trabalhadores escravos.

Governador reeleito de MG, Romeu Zema, que defende o liberalismo, declarou apoio a Bolsonaro no 2º turnoFoto: Adriano Machado/REUTERS
Nessa transição do Império para a República, Gentile afirma que
- muitos intelectuais e políticos brasileiros consideravam o liberalismo uma ideia “fora de lugar” no país,
- devido ao seu estágio de desenvolvimento econômico e social,
- e que o Brasil precisaria de uma “fase autoritária”para avançar.
A associação entre liberalismo e autoritarismo não foi exclusiva do Brasil.
Gentile menciona que
- Milton Friedman, um dos expoentes do neoliberalismo – teoria que atualizou os princípios liberais na segunda metade do século 20 –
- considerava a realização da sociedade de mercado o objetivo principal,
- e deu seminários e instruiu autoridades da ditadura de Augusto Pinochet no Chile, que durou de 1973 a 1990.
Diversos chilenos que haviam estudado na Universidade de Chicago nos anos 70 e 80 sob a orientação de Friedman
- trabalharam posteriormente no governo Pinochet, ficando conhecidos como Chicago Boys.
- O ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, estudou nessa universidade na mesma época.
Gentile afirma que a ascensão da direita no Brasil na segunda década do século 21
- reproduz a “peculiar convivência de princípios liberais e práticas autoritárias”
- e inclui alianças entre um líder de perfil autoritário e movimentos neoliberais que não concordam com toda a cartilha bolsonarista, mas o “consideram útil” para seus interesses.
Um exemplo é o apoio a Bolsonaro do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, do partido Novo, criado em 2015 para defender o liberalismo no Brasil.
Liberdade versus fantasma do comunismo
Há um outro aspecto que ajuda a compreender o que o presidente tem em mente ao se referir à defesa da liberdade, diz Gentile: a época e o tipo de sua formação acadêmica.
O presidente graduou-se pela Academia Militar das Agulhas Negras em 1977, quando a liberdade era um conceito “abusado” no mundo e no Brasil para se contrapor ao modelo comunista durante a Guerra Fria.
- A defesa da liberdade foi um dos motes do golpe militar de 1964, expresso no nome da Marcha da Família com Deus pela Liberdade,
- uma sequência de manifestações de rua que antecederam a derrubada do governo do então presidente João Goulart.
Bolsonaro é um defensor da ditadura que governou o Brasil até 1985, e elogiou e homenageou líderes e torturadores do regime militar.
- “Ele incorporou a teoria do golpe de 1964 como um argumento de libertação do país do inimigo comunista, como um movimento libertador do Brasil.
- Então, para ele, a liberdade é totalmente compatível com uma ditadura que sufoca quem não está de acordo”, diz Gentile.
O presidente e sua campanha à reeleição seguem recorrendo ao fantasma do comunismo para aglutinar apoiadores.
- Em setembro, antes do primeiro turno, ele disse num comício em Sorocaba que Lula era um “capeta que quer impor o comunismo no nosso Brasil”.
- Nesta quarta-feira, a senadora eleita Damares Alves (Republicanos), afirmou em post no Twitter que o Brasil seria a “última barreira de proteção contra o avanço do comunismo na América”.
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