Leonardo Boff – 22 Setembro 2022 | Foto: DAQUI
O artigo é de Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor. Boff é autor, entre outros, de Cuidar da Terra-proteger a vida: como evitar o fim do mundo (Record, 2010) e A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra (pela editora Vozes, no prelo).
Eis o artigo.
Ouvimos com frequência as ameaças de golpe à democracia por parte do atual presidente. Ele realizou aquilo que Aristóteles chama de kakistocracia: “o poder democracia dos piores”.
- Cercou-se de milicianos,
- colou nos cargos públicos algumas dezenas de militares de espírito autoritário, ligados ainda à revolução empresarial-militar de 1964,
- fez aliança com os políticos do Centrão que, ao invés de representar os interesses gerais do povo, vivem de privilégios e de propinas e fazem da política uma profissão para o próprio enriquecimento.
Não vi melhor descrição realística de nossa democracia do que esta, de meu colega de estudos, brilhante inteligência, Pedro Demo. Em sua Introdução à sociologia (2002), diz enfaticamente:
- ”Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis ‘bonitas’, mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que a ela sirva do começo até o fim.
- Político é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniguados, enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima…
- Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação” (p. 330-333).
Logicamente,
- há políticos honrados, éticos e organicamente articulados com suas bases e com os movimentos sociais e com o povo em geral.
- Mas, em sua maioria, os políticos traem o clássico ideal de Max Weber,
- a política como missão em vista do bem comum e não como profissão em vista do bem individual.
Já há decênios estamos discutindo e procurando enriquecer o ideal da democracia:
- da representativa, passar à democracia participativa e popular,
- à democracia econômica, à democracia comunitária dos andinos (do bien vivir),
- à democracia sem fim, à democracia ecológico-social e, por fim, à uma democracia planetária.
Tudo isso se esfumou face aos ataques frequentes do atual presidente.
Este pertence, primeiramente, ao âmbito da psiquiatria e, secundariamente, da política.
- Temos a ver com alguém que não sabe fazer política, pois trata os adversários como inimigos a serem abatidos (recordemos o que disse na campanha: há que se eliminar 30 mil progressistas).
- Descaradamente afirma ter sido um erro da revolução de 1964 torturar as pessoas quando deveria tê-las matado,
- defende torturadores, admira Hitler e Pinochet.
Em outras palavras, é alguém psiquiatricamente tomado pela pulsão de morte, o que ficou claro na forma irresponsável com que cuidou da Covid-19.
Ao contrário, a política em regime democrático de direito
- supõe a diversidade de projetos e de ideias,
- as divergências que tornam o outro um adversário mas jamais um inimigo.
Isso tudo o presidente não conhece. Nem nos refiramos à falta de decoro que a alta dignidade do cargo exige, comportando-se de forma grosseira e envergonhando o país quando viaja ao estrangeiro.
Somos obrigados a defender a democracia mínima, a representativa.
- Temos que recordar o mínimo do mínimo de toda democracia que é a igualdade à luz da qual nenhum privilégio se justifica.
- O outro é um cidadão igual a mim, um semelhante com os mesmos direitos e deveres.
- Essa igualdade básica funda a justiça societária que deve sempre ser efetivada em todas as instituições e que impede ou limita sua concretização.
Esse é um desafio imenso, esse da desigualdade, herdeiros que somos de uma sociedade da Casa-Grande e da senzala dos escravizados, caracterizada exatamente por privilégios e negação de todos os direitos aos seus subordinados.
Mesmo assim temos que garantir um estado de direito democrático contra as mais diferentes motivações que o presidente inventa
- para recusar a segurança das urnas,
- de não aceitar uma derrota eleitoral, sinalizadas pelas pesquisas,
- como a Datafolha à qual ele contrapõe a imaginosa Datapovo.
A atual eleição representa um verdadeiro plebiscito:
- que forma de Brasil nós almejamos?
- Que tipo de presidente queremos?
Por todo o desmonte que realizou durante a sua gestão, trata-se do enfrentamento da civilização com a barbárie.
Se reeleito, conduzirá o país a situações obscuras do passado há muito superadas pela modernidade.
É tão obtuso e inimigo do desenvolvimento necessário, que
- combate diretamente a ciência,
- desmonta a educação
- e desregulariza a proteção da Amazônia.
A presente situação representa um desafio a todos os candidatos, pouco importa sua filiação partidária: fazer uma declaração clara e pública em defesa da democracia.
Diria mais,
- seria um gesto de patriotismo, colocando a nação acima dos interesses partidários e pessoais,
- se aqueles candidatos que, pelas pesquisas, claramente, não têm chance de vitória ou de ir ao segundo turno, proclamassem apoio àquele que melhor se situa em termos eleitorais
- e que mostra, como já mostrou, resgatar a democracia e atender aos milhões de famintos e outros milhões de deserdados.
Temos que mostrar, a nós mesmos e ao mundo, que há gente de bem, que são solidários com as vítimas da Covid-19, nomeadamente, o MST, que continuam fazendo cultura e pesquisa.
Este será um legado sagrado para que todos nunca esqueçam de que, mesmo em condição adversas, existiram bondade, inteligência, cuidado, solidariedade e refinamento do espírito.
Pessoalmente, me é incômodo escrever sobre essa democracia mínima, quando tenho me engajado por uma democracia socioecológica.
Face aos riscos que teremos que enfrentar, especialmente, do aquecimento global e seus efeitos danosos, cabe à nossa geração decidir
- se quer ainda continuar sobre esse planeta
- ou se tolerará destruir-se a si mesma e grande parte da biosfera.
A Terra, no entanto, continuará, mas sem nós.
.
Leonardo Boff
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