… qual é a verdadeira intenção do Apocalipse?
Escrito durante a perseguição dos cristãos por Roma, é um livro que, em linguagem simbólica e cifrada, quer essencialmente dar ânimo aos que crêem:a última palavra não pertence ao mal, mas ao bem.
1- O Apocalipse, último livro da Bíblia, anda constantemente associado ao esotérico, à catástrofe, ao fim do mundo…
Quem nunca ouviu falar da besta, do dragão, do número 666? Quando se quer aludir a catástrofes, horrores, guerras, fim do mundo, lá vem o adjectivo tenebroso “apocapítico”.
Quem quiser uma informação rápida, científica e séria, consulte as páginas que lhe dedicou o grande exegeta Padre Carreira das Neves na obra que escreveu a meu pedido: O que é a Bíblia.
A título de exemplo, lá encontrará a explicação para os números:
- 3 é um número perfeito e o número de Deus;
- 3+4=7 ou 3×4=12, para simbolizar a plenitude (os dias da criação ou a aliança de Deus, respectivamente),
- os 144.000 assinalados são o múltiplo de 3x4x12x1.000 – 1.000 é o símbolo da universalidae – e simbolizam o novo povo de Deus.
Em sentido contrário, a metade destes números só pode significar o não-tempo de Deus e a sua não-aliança, como é o caso de três e meio e de seis.
- Assim, 666 é o número da besta, um símbolo numérico do nome e título de Domiciano como imperador.
- A mulher pode designar a Igreja perseguida, a prostituta ou a noiva do Cordeiro…
2 – Mas qual é a verdadeira intenção do Apocalipse, que é, repito, o último livro da Bíblia?
- Escrito durante a perseguição dos cristãos por Roma, é um livro que, em linguagem simbólica e cifrada,
- quer essencialmente dar ânimo aos que crêem: a última palavra não pertence ao mal, mas ao bem.
Decisivo é compreender que o livro do Apocalipse tem o sentido exactamente contrário ao vulgarizado:
- trata do combate entre o Império romano e a Igreja de Deus,
- para animar os cristãos perseguidos, dando-lhes esperança:
- Deus e o seu Cristo triunfarão.
Aliás, hoje os estudiosos pensam que a verdadeira estrutura do Apocalipse reside numa grande liturgia terrestre e celeste ao Cordeiro, que representa Cristo.
O Apocalipse não quer, portanto, anunciar o fim, ele é antes uma promessa.
Com os melhores exegetas – lembrar, por exemplo, a correspondência epistolar pública entre o cardeal Martini, então arcebispo de Milão, e o escritor Umberto Eco, editada posteriormente em livro: Em que é que crê quem não crê?-,
deve-se ver no Apocalipse um tríplice objectivo:
- mostrar que a História tem uma finalidade, uma orientação, não é uma amálgama de acontecimentos sem sentido contada por um idiota, na expressão de Shakespeare;
- depois, que esse sentido já está presente no mundo, mas não é meramente imanente, pois só encontrará a sua realização plena meta-historicamente;
- finalmente, que este sentido meta-histórico se vai decidindo nos acontecimentos da história – daí, a responsabilidade ética do ser humano – e ao mesmo tempo não é da ordem do cálculo, mas objecto da esperança,
já que o último salto para “um novo céu e uma nova terra” pertence ao Criador.
3 – Seja como for, é bom e, diria mesmo, urgente reflectir sobre o Apocalipse enquanto extermínio do mundo.
Basta pensar, por exemplo, no suicídio colectivo,
- se não forem tomadas medidas drásticas no que se refere à poluição, ao aquecimento global, às alterações climáticas…
- E agora está aí, bem à vista, a ameaça do horror nuclear…
Como disse António Guterres, Secretário-geral da ONU,
“se as armas nucleares forem usadas, provavelmente não vai haver ONU para responder, significaria a destruição do planeta.”
Bandeira da União Europeia: 12 estrelas | Foto / Reprodução
4 – E seja permitida uma nota à margem, sugerindo esperança. Afinal, contactamos mais com o Apocalipse do que julgamos.
- O símbolo da Europa – aquelas doze estrelas douradas sobre fundo azul, que encontramos na bandeira da União Europeia –
- está em ligação com um passo célebre do Apocalipse (12, 1):
“Depois, apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça.”
Afinal,
- um símbolo do povo de Deus,
- um símbolo da unidade na diversidade,
- um símbolo da perfeição (3×4)
– lembrar, por exemplo, as doze tribos de Israel ou os doze Apóstolos.
De qualquer modo, a situação da Europa, no contexto da nova geoestratégia e geopolítica, é de uma temível fragilidade.
Ataque a Salman Rushdie, profeta e mártir da liberdade de opinião e de expressão – Foto: Whats Now
5 – Estava eu na escrita desta crónica quando me chegou a notícia do ataque selvagem a Salman Rushdie. Quero manifestar-lhe a minha solidariedade, com o desejo vivo de que possa continuar a ser o símbolo do combate corajoso a favor da liberade de opinião e expressão.
Encontrei-o em 2006 em Santa Maria da Feira para um debate sobre o choque das religiões.
- Ele ficou muito admirado por eu, padre católico, ter defendido que os livros sagrados exigem uma leitura histórico-crítica.
- Continuo a pensar isso, pois essa é uma condição essencial para a liberdade religiosa.
- Os livros sagrados não são ditados por Deus.
Outra condição é a laicidade do Estado, a separação da Igreja e do Estado, isto é, o Estado deve ser confessionalmente neutro, para poder salvaguardar a liberdade religiosa de todos, incluindo os ateus.
Mas laicidade não é laicismo, que pretende excluir a religião do espaço público.
No contexto de uma reflexão sobre o Apocalipse, quero sublinhar como decisivo o diálogo inter-religioso, em ordem a evitar uma catástrofe apocalíptica.
Por paradoxal que pareça,
- desse diálogo fazem parte também os ateus – os ateus que sabem o que isso quer dizer -,
- pois, “de fora”, talvez mais facilmente se apercebam da superstição, idolatria, inumanidade, que tantas vezes envenenam as religiões.
Voltarei ao tema.
.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/o-apocalipse-as-doze-estrelas-salman-rushdie-15101826.html
Leave a Reply