OUTRASPALAVRAS – GEOPOLÍTICA & GUERRA

Por Rafael Poch, no CTXT | 27/06/2022 | Tradução: Maurício Ayer
“Para que o trigo valha dinheiro: água, sol… E guerra em Sebastopol”, costumavam dizer em Castela.
Imagino que o ditado tenha sido usado pela primeira vez em meados do século XIX, após a Guerra da Crimeia, e faz referência ao importante papel das ricas planícies ucranianas e das suas terras negras na produção de cereais e na dinâmica dos preços.
Digo exemplar por conta da evidente e bem conhecida relação que existe entre os desastres da guerra e da fome (segundo o PAM, 60% dos famintos vivem em zonas afetadas pela guerra e pela violência).
No caso da Ucrânia,
- isso representará um aumento de 47 milhões no número de pessoas com fome aguda no mundo.
- Em outras palavras, o número de pessoas famintas aumentará este ano de 276 milhões (nível anterior à guerra) para 323 milhões, de acordo com esta fonte.
- Mas também é exemplar devido à forma como este problema é utilizado para fins belicistas, num contexto de propaganda de guerra.
A guerra na Ucrânia agrava os impactos já gerados por outros conflitos:
- a pandemia, a crise climática e o incremento dos custos pelo aumento dos preços dos cereais, que já vinha de antes, e pelo transporte.
- A África Subsaariana será a área mais afetada.
- Egito, Tunísia, Turquia, Líbano, Síria, Argélia, Marrocos, Somália, Etiópia e Sudão receberão menos grãos – e além disso por preços mais altos.
Este relatório do PAM foi publicado em março, mas a maioria dos nossos meios de comunicação só o reverberaram em junho. E, muitas vezes, relataram-no mal.
- A Rússia e a Ucrânia são responsáveis por 30% das exportações globais de trigo.
- Ambos os países são também grandes exportadores de cevada, milho, sementes de girassol e óleo de girassol.
Grande parte dessa exportação
- vai para o sul, para a Ásia, o Oriente Médio, o Norte africano e a África Subsaariana,
- onde se situam alguns dos países mais pobres do mundo, que já estava no limite em razão dos efeitos do aumento dos preços, do estresse pandêmico e dos flagelos habituais:
- guerra, corrupção, desigualdade, má gestão….
A Otan afirma que o bloqueio russo aos portos ucranianos é a razão do aumento quantitativo da fome que a ONU e o PAM anunciam e contabilizam
- Mas a Rússia exporta muito mais do que a Ucrânia: 20% de trigo, farinha e derivados, ante 8,5% da Ucrânia.
- Portanto, o que a Otan, a UE e os EUA – e com eles, o grosso dos nossos meios de comunicação –
- não dizem é que as sanções ocidentais contra a Rússia são muito mais significativas na gênese deste perigo do que o bloqueio russo aos portos ucranianos.
As sanções impostas à Rússia impedem a exportação de cereais russos;
- 50% desse cereal – que é muito mais do que tudo o que a Ucrânia exportava dos seus portos – foram exportados do porto russo de Novorossiysk, na costa oriental do Mar Negro.
- Como resultado das sanções, os navios não podem acessar a este porto para carregar.
As companhias de seguros não cobrem o tráfego destes navios, e os navios de bandeira russa não podem utilizar a infraestrutura portuária mundo afora.
Além disso, a Rússia não pode cobrar o pagamento pelo comércio de cereais porque os sistemas de pagamento estão bloqueados e os bancos internacionais estão fechados para suas atividades.
As sanções financeiras
- impedem a Rússia de cobrar estas exportações e introduzem o risco de que os pagamentos através de bancos e sistemas controlados pelos sancionadores sejam confiscados, como aconteceu
- com os US$ 300 bilhões russos que foram depositados nos Estados Unidos
- (e com os US$ 9 bilhões afegãos, cuja apropriação, em vingança pelo desastre militar no Afeganistão, agrava a fome naquele infeliz país,
- e com os bilhões de dólares iranianos roubados em resposta à revolução de 1979, e…).
O segundo aspecto pelo qual as sanções agravam a situação diz respeito aos fertilizantes.
- O preço dos fertilizantes aumentou devido ao aumento do preço do gás, que é a matéria-prima com a qual eles são produzidos.
- A Rússia e a Bielorrússia são, respectivamente, o primeiro e sexto maiores produtores mundiais de fertilizantes. Em conjunto, representam 20% da produção global. E ambos estão sob sanções.
Portanto, tudo isso afeta os preços. E o aumento dos preços tem um impacto direto na capacidade das pessoas mais pobres de pagar pelos seus alimentos: muitos dos que antes fechavam as contas com aperto agora já não conseguem, adverte o PAM.
Não se pode portanto dizer, como o bloco UE/Otan e os EUA afirmam, que é a Rússia, ou apenas a Rússia, que é a responsável.
- Existe obviamente uma clara responsabilidade russa por ter iniciado a invasão, uma responsabilidade inseparável das circunstâncias que a provocaram também de fora da Rússia.
- A coisa mais diplomática a dizer é que existe uma responsabilidade partilhada.
E a coisa mais objetiva a dizer é que as sanções ocidentais contra o seu adversário geopolítico neste conflito são um fator de aumento da fome mais importante do que o bloqueio dos portos ucranianos, que os russos estão dispostos a levantar sob certas condições.
Apesar disso, a mensagem dos políticos atlantistas e dos seus meios de comunicação é inequívoca.
Em 24 de maio, em Davos, a inefável presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que
- “a Rússia está bombardeando silos na Ucrânia, bloqueando os cargueiros ucranianos cheios de trigo e girassol
- e acumulando as suas próprias exportações de alimentos como forma de chantagem.
- Isso é usar a fome e os cereais como recurso de poder”
(Wall Street Journal, 24 de mayo: “Ukraine-Russia War Is Fueling Triple Crisis in Poor Nations”)
“Temos de assegurar que este cereal seja enviado para o mundo, caso contrário milhões de pessoas passarão fome”,
diz a ministra de Assuntos Estrangeiros canadense, Melanie Joly.
O que emerge destas declarações
- é uma campanha para quebrar militarmente o bloqueio da Rússia à costa ucraniana, alegando uma “catástrofe humanitária”.
- Em outras palavras, uma escalada militar ainda mais perigosa.
No dia seguinte à declaração de von der Leyen, o editorial do Wall Street Journal explicou de que se trata sob o título “Quebrar o Bloqueio Alimentar de Putin”:
- “O mundo precisa de uma estratégia para quebrar o bloqueio russo aos portos ucranianos, de modo a que os alimentos e outros bens possam ser exportados,
- e isso significa um plano para utilizar navios de guerra para escoltar navios mercantes para fora do Mar Negro” (…)
- “o mundo civilizado deve agir em breve para evitar uma crise humanitária ainda maior”.
- Putin está utilizando “a pressão alimentar global para conseguir que a Otan e outras nações concordem com a paz nos seus termos”.
E o jornal propôs “uma coalizão internacional de navios de guerra” independente da Otan para levar a cabo essa estratégia sem que a Rússia possa denunciá-la como provocação.
A guerra vai durar muito tempo
- Os centros de poder e os meios de comunicação ocidentais defendem claramente a sua eternização.
- O Kremlin também não está interessado em negociações enquanto não tiver como resultado claro – ou aparente – um êxito militar que possa apresentar como conclusão do conflito.
Qualquer pretexto “humanitário” será, e é, explorado neste contexto belicista.
O aumento da fome no Sul não importa em Bruxelas, nem em Washington, nem em Wall Street. E para Moscou é um “efeito colateral” das mal calculadas sanções ocidentais contra a Rússia.
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