
Por Anahí Macaroff, no Nuso – 23 junho 2022 | Foto: DAQUI
Convocada pelos indígenas, greve geral alastrou-se e já dura 11 dias. Movimento volta-se contra políticas neoliberais (alta dos combustíveis, endividamento, cortes na Educação) e mineração predatória. Estado de sítio não detém protestos
| Tradução: Rôney Rodrigues
Atualização:
Ontem (22/3), o governo equatoriano se recusou a revogar o estado de sítio – sob o pretexto de “deixar a capital indefesa”– e as condições de diálogo propostas pelos movimentos indígenas.
Há 10 dias o país vive uma greve geral. Protestos tomaram as ruas, exigindo
- a redução dos preços dos combustíveis (do equivalente a R$ 2,89 para R$ 2,27/litro!) e dos itens da cesta básica,
- a revogação dos cortes brutais no orçamento das universidades públicas
- e consulta popular sobre projetos extrativistas em terras indígenas.
Polícia e Exército reprimem manifestantes.
- Um dirigente indígena, atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo no rosto, morreu – e há dezenas de feridos, presos e desaparecidos.
- Há ondas de vandalismo (condenadas pelos manifestantes) e toque de recolher na capital.
Estradas estão trancadas. Diversas cidades enfrentam escassez de alimentos e combustíveis. Nessa segunda-feira, 10 mil indígenas chegaram a Quito, após dias em marcha.
A ONU e OEA estão entre as 300 instituições que pediram ao governo e aos líderes indígenas que cheguem a um acordo neste momento em que o país enfrenta uma grave crise social, econômica e política.
- Leonidas Iza, líder da Conaie, entidade indígena que convocou a greve nacional, ficou detido de forma ilegal por 24 horas, mas foi solto no dia 15, em liberdade condicional.
- Ele afirma que o presidente Guilherme Lasso tem as “mãos manchadas de sangue”–e reitera sua disposição em dialogar sob supervisão cidadã para garantir “resultados efetivos”.
- A mobilização segue e agrega, além dos povos ancestrais, estudantes, feministas, movimento negro e organizações de bairro. (Rôney Rodrigues)
Ecuador:
As ruas voltam a incendiar-se | Foto: DAQUI
A convocação de greve e a mobilização da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), em 13 de junho, é o primeiro grande protesto que o presidente Guillermo Lasso enfrenta desde que chegou ao poder em 2021.
Os protestos vão se alastrando em grande parte pelas próprias ações do governo que geraram forte rejeição popular – e diversos setores vão se somando à greve.
- Do partido no poder, denuncia-se a existência de uma tentativa desestabilizadora.
- As Forças Armadas até apontaram ligações entre os traficantes e as manifestações.
- A partir das organizações sociais, por outro lado, afirma-se que são as mesmas ações repressivas que abalam as instituições democráticas.
Chaves para entender o protesto e a agitação social
Desde junho de 2021,
- a Conaie manteve diversos diálogos com o governo e apresentou uma série de propostas que não foram aceitas,
- razão pela qual em novembro daquele ano a entidade indígena deu por encerrado o diálogo.
A partir daí, a tensão foi aumentando até a atual convocatória de uma greve nacional para exigir o cumprimento de dez demandas fundamentais.
Entre elas está
- a suspensão do aumento dos combustíveis,
- a renegociação das dívidas dos clientes do sistema financeiro nacional,
- a regulação dos preços dos produtos agrícolas,
- a revogação dos decretos 95 e 151 que promovem o aumento da exploração petrolífera e da mineração,
- respeito à consulta prévia, livre e informada para iniciar projetos extrativistas em territórios comunitários e indígenas
- e, por fim, a regulação dos preços de produtos essenciais.
O governo afirma que não há motivos para o protesto, mas não é isso que percebem diversos setores da sociedade. A crise social e econômica, agravada pela pandemia de covid-19,
- expôs a falta de políticas públicas do governo de centro-direita de Lasso,
- político e banqueiro que no ano passado derrotou o candidato da correísta Andrés Arauz no segundo turno das eleições,
- mas que teve que governar com maioria oposicionista no Congresso e uma oposição latente nas ruas.
Guillermo Lasso e o labirinto das esquerdas ecuatorianas – Foto: DAQUI
Lasso
- priorizou a salvaguarda dos interesses de grandes empresas e bancos, aprofundando ainda mais os abismos da desigualdade.
- A crise do país combina, de fato,diversos fatores.
- A inflação e o aumento constante dos preços fazem com que quase 70% da população tenha dificuldades para adquirir a cesta básica .
O setor agrícola – especialmente os pequenos produtores –, já duramente atingido, sofre ainda mais os efeitos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
- A isso se somam a falta de medicamentos e a crise no sistema de saúde,
- bem como o aumento das taxas de desemprego e as altas taxas de emprego precário, que abrangem 62,6% das pessoas ativas — especialmente mulheres, jovens, indígenas e afrodescendentes.
Soma-se a esse cenário
- a redução do orçamento das universidades e o descumprimento da promessa de campanha de acesso sem restrições às casas estudo,
- além da poderosa onda de violência com ações das milícias (nas quais são vistos membros ativos das forças policiais)
- e a crise carcerária, com o assassinato de dezenas de detentos.
O veto presidencial da lei e da resolução do Tribunal Constitucional para permitir o aborto por estupro é, finalmente, a cereja deste coquetel explosivo.
Diante dessa situação, o aumento dos protestos tornou-se evidente. E a resposta do governo e das forças repressivas diante do atual quadro de greve nacional apenas esquentaram os ânimos.
Alta tensão nas ruas do Ecuador | Foto: DAQUI
O morde e assopra: medidas que alimentam a greve
- Embora a convocação de greve seja voltada principalmente para o movimento indígena,
- desde o início estudantes, organizações de mulheres e oposição fizeram parte das mobilizações.
- Estes últimos, de fato, conseguiram incluir suas vozes e uma presença permanente nas coletivas de imprensa que as lideranças oferecem todas as noites.
No entanto, diferentemente do que aconteceu em 2019, por ocasião dos fortes protestos contra o governo de Lenín Moreno, as organizações operárias não entraram em greve imediatamente e convocaram uma mobilização para 22/6.
O segundo dia de greve foi marcado pela prisão de Leónidas Iza, presidente da Conaie, por interrupção dos serviços públicos. Para os atores sociais mobilizados,
- esta ação representa uma clara perseguição política e o cumprimento da ameaça feita meses atrás pelo próprio presidente da República
- quando afirmou que“Leónidas Iza vai acabar com seus ossos na cadeia” .
Essa prisão suscitou uma onda de repúdio por suas múltiplas irregularidades e inflamou os ânimos, agregando mais organizações e moradores de bairros populares à mobilização.
No terceiro dia da greve, na cidade de Cuenca, a terceira maior do país,
- foram registrados vários confrontos entre estudantes universitários e policiais
- que, violando a autonomia universitária, lançaram gás lacrimogêneo dentro da instituição, como havia acontecido em 2019 na Universidade Católica de Quito.
Foi a mesma ação repressiva que fez com que toda a comunidade acadêmica, chefiada pela reitora María Augusta Hermida, aderisse à greve e se mobilizasse pacificamente no dia seguinte .
Cenas semelhantes foram vividas no oitavo e nono dias de greve, quando as forças de segurança reprimiram, perto da Universidade Salesiana, uma das duas universidades que, juntamente com a Universidade Central, decidiram abrir suas portas como centros de acolhimento humanitário. A mesma coisa aconteceu na Universidade Católica, que foi invadida por um grupo anti-motim, violando sua autonomia.
- No quarto dia, e na tentativa de acalmar as águas, o governo anunciou a publicação do decreto executivo 452 e a assinatura do acordo ministerial 0069,
- com os quais buscava responder parcialmente duas exigências da Conaie.
- Com o decreto, o governo prometia intensificar as intervenções e operações para controlar os preços dos produtos essenciais e punir quem não cumprir os pagamentos justos aos produtores de banana.
O quinto dia da greve foi de fortes confrontos na província de Chimborazo
- que terminou, segundo a Confederação do Movimento Indígena Chimborazo (Comich), com 40 feridos, dois deles em estado grave.
- Estes últimos teriam sido atingidos por balas, apesar de a polícia ter afirmado que estava “disposta a não usar armas de fogo ou munições letais”.
- À noite, o presidente da República declarou estado de emergência em três províncias: Pichincha, Cotopaxi e Imbabura.
O decreto teve duas versões.
- Inicialmente, circulou um que incluía uma restrição ao direito à liberdade de informação que poderia implicar na suspensão dos serviços de telecomunicações fixas, móveis e pela internet.
- Além disso, limitava a circulação de informações “devidamente classificadas”, reservadas ou de circulação restrita nas mídias sociais, redes sociais e conteúdos comunicacionais.
- E o uso progressivo da força, incluindo a letal, foi autorizado.
Por fim, diante da onda de vozes que alertavam para a violação de direitos constitucionais, o governo afirmou que, apesar de ter a assinatura do presidente, o que havia circulado era “um rascunho” e que a versão final não continha esses artigos polêmicos.
No entanto, isso motivou a convocação da Assembleia Nacional para tratar da revogação do decreto.
A Constituição contempla a possibilidade de o Parlamento
“revogar o decreto a qualquer momento, sem prejuízo do pronunciamento que o Tribunal Constitucional possa fazer sobre a sua constitucionalidade”.
Após o decreto, a deputada do partido indígena Pachakutik, Mireya Pazmiño,apresentou um pedido para tratar da revogação no plenário na segunda-feira, 20/6.
Naquele dia, pouco antes da sessão plenária, o Poder Executivo revogou e substituiu o decreto por um novo que ampliou as províncias abrangidas pelo estado de exceção.
Com essa estratégia, a Assembleia não pode mais se reunir e deve reenviar uma nova moção e esperar pelo menos 48 horas para tratá-la.
Com esse decreto,
- o governo busca controlar a extensão da manifestação e restringir a chegada de indígenas à capital,
- mas, ao mesmo tempo, mostra certa discricionariedade na aplicação das regras,
- uma vez que, ao mesmo tempo em que é restringida a liberdade de associação e reunião,
- a Secretaria Geral de Comunicação do Executivo convocou os cidadãos para participar de um dia de mobilizações pela paz, em 18/6, em vários pontos de Quito .
A última ação que põe em questão o respeito às instituições democráticas e reaviva tensões
- foi a incursão e posterior tomada da Casa das Culturas Equatorianas, em Quito, pela polícia,
- em busca de “material de guerra, como explosivos e armas artesanais”.
Durante os protestos de 2019, esta instituição serviu de base para milhares de militantes e organizações sociais, bem como para a realização de assembleias permanentes. Não encontrando nada, e amparada pelo decreto do estado de sítio,
- a polícia decidiu ter a Casa das Culturas como abrigo para os fardados,
- mesmo diante da indignação de artistas, gestores culturais e cidadãos que convocaram uma vigília em repúdio à intervenção policial.
A Casa das Culturas é uma instituição cultural criada em 1944 que funciona em regime autônomo e que só tinha sofrido uma intervenção – como a que ocorreu no passado domingo – apenas durante a ditadura militar, em 1963.
Este fato
- foi condenado em inúmeros comunicados emitidos por universidades, artistas e instituições;
- recebeu somente o respaldo do Ministério da Cultura, que justificou a atuação dos policiais uniformizados como uma ação de proteção aos acervos e bens patrimoniais encontrados em seu interior.
O último elemento que colocou lenha na fogueira foram
- as polêmicas declarações de chefes das Forças Armadas tentando vincular as manifestações ao narcotráfico e ao crime organizado,
- num momento em que o governo, em aliança com a Embaixada dos Estados Unidos, busca promover o Plano Equador – com base no modelo do Plano Colômbia –,
- para frear a entrada do narcotráfico no país.
Repressão e apelos ao diálogo
A queda na popularidade do presidente Lasso pouco mais de um ano após assumir a presidência é abrupta, o que restringe a possibilidade de canalização de demandas por vias institucionais. De acordo a pesquisa Perfiles de Opinión,
- Lasso começou seu mandato com mais de 75% de aprovação.
- Agora ele tem uma reprovação de cerca de 80%.
- E é que, depois de um ano de governo, a única das promessas de campanha que o governo cumpriu integralmente foi a campanha de vacinação contra a covid-19.
A chegada à presidência de Lasso,
- com um programa de governo abertamente pró-empresarial,
- representou uma ruptura após duas décadas em que as elites não conseguiam chegar ao poder por meio de eleições.
É importante destacar que as elites ganham não porque conseguiram ampliar o apoio ao seu projeto político, mas pela fragmentação das demais opções.
Lasso obteve apenas menos de 20% no primeiro turno de 2021, daí sua baixa representação parlamentar.
Após assumir o cargo, o presidente se afastou do Partido Social Cristão (PSC) que o apoiou para chegar à Presidência e que ideologicamente parecia ser seu aliado natural.
No entanto,
- além das disputas de poder e confrontos midiáticos na aplicação de um plano econômico,
- tanto o partido no poder quanto o PSC respondem a setores de elites financeirizadas e agroexportadoras com interesses comuns.
Essa coesão
- se concretiza em situações de mobilização social como a atual
- e permite que o governo aplique uma forte repressão com o apoio das Forças Armadas, da grande mídia e das elites econômicas.
Por sua vez, aqueles que deveriam representar a oposição – Pachakutik e o correísta Unión por la Esperanza (UNES) –
- ficaram presos no jogo de alianças com o Executivo sob o argumento da governabilidade,
- permitindo assim o avanço do programa de governo e, ao mesmo tempo, minando a credibilidade moral das forças de oposição.
Ainda assim, ao longo deste primeiro ano
- a relação entre o Executivo e a Assembleia Nacional foi marcada pela tensão,
- com ameaças de “morte cruzada”, um mecanismo presente na Constituição do Equador que confere ao Poder Executivo o poder de dissolver o Congresso
- com a obrigação de convocar eleições em um período de seis meses para renovar ambos os poderes.
Durante esse período, o presidente pode governar por decreto.
No nono dia da greve nacional, após dois anos de pandemia que aprofundou as desigualdades e com a memória recente do levante de outubro de 2019,
- as condições para um diálogo frutífero ainda não se concretizaram.
- Dessa forma, o que está em jogo não são apenas as dez demandas levantadas pela Conaie,
- mas as possibilidades de uma resolução do conflito que evite a erosão das instituições democráticas.
Isso é algo que, até agora, não parece estar acontecendo.

Leave a Reply